Texto publicado no Caderno Movimento, em 7 de dezembro de 2008
Por Rodrigo Alves
Nas terras de Henry Ford, um homem negro, uma mulher e um branco conservador disputam a presidência do país. A mulher é derrotada antes do pleito final e o vencedor é o representante dos oprimidos. Se a história te faz lembrar Barack Obama, Hilary Clinton e John McCain, saiba que, na verdade, ela é fruto da ficção do aclamado escritor brasileiro Monteiro Lobato (1882-1948). O enredo se passa no longínquo ano de 2228 e está presente no livro “O Homem Negro ou o Choque das Raças”, único romance adulto do escritor, lançado em 1926 e relançado em 2007 pela Editora Globo.
A profética obra atraiu a imprensa estrangeira e está prestes a conquistar o mercado editorial norte-americano 60 anos depois da morte de seu autor.
Escrito originalmente em forma de folhetim e publicado no jornal carioca “A Manhã”, o enredo de “O Presidente Negro” gira em torno de Airton Lobo, que, por acidente, se torna confidente de um cientista. Ao freqüentar a casa, ele entra em contato com o porviroscópio, uma espécie de máquina do tempo, e assiste aos acontecimentos nos Estados Unidos no distante ano de 2228.
Ao ter acesso ao aparelho, Lobo descobre que naquele ano um político negro é eleito como o 88º presidente dos Estados Unidos, disputando as eleições com um branco conservador e uma mulher.
Entre as previsões futurísticas do enredo estão, por exemplo, uma espécie de radiotransmissor de dados para que os humanos cumpram suas tarefas sem precisar sair de casa. Há também o desaparecimento do jornal impresso — uma vez que as notícias são radiadas e aparecem por meio de caracteres luminosos na tela —, supõe-se a internet, o crescimento da China e o descobrimento do petróleo no Brasil.
A publicação voltou às prateleiras no ano passado, com o slogan: “qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência”.
Desde então, a intrigante obra ganhou espaço na mídia estrangeira, principalmente depois que a corrida presidencial nos Estados Unidos tornou-se intensa e as previsões de vitória para Obama aumentaram.
Em setembro, o Washington Post afirmava: “Novela brasileira prevê nos Estados Unidos eleição determinada pela raça”. Logo após a eleição do candidato negro, o assunto voltou à pauta do noticiário. O italiano La Nazione estampou em 3 de novembro a reportagem “Il presidente nero? Uno scrtittore lo aveva previsto nel 1926″ e o jornal britânico The Guardian noticiou: “Ficção científica previa vitória de Obama”, na última segunda-feira, 1º de dezembro.
Para não deixar a oportunidade passar em branco, os detentores dos direitos autorais se mobilizaram para que a obra de Lobato chegue às livrarias norte-americanas.
Sem afirmar a editora, Rodrigo Monteiro Lobato — neto do escritor — garante que a versão está na fase de tradução e que será lançada em breve. Há também o interesse de uma editora italiana e o assunto, segundo ele, está sendo negociado com a Editora Globo.
“A repercussão do livro depois da eleição de Obama está muito intensa, principalmente nos Estados Unidos”, garante Rodrigo Lobato, em entrevista por telefone ao Jornal de Piracicaba. Ele e mais outras três pessoas são titulares dos direitos do autor: Joyce Campos Kornbluh (também neta de Lobato) e seu marido Jorge Kornbluh e a ex-mulher de Rodrigo, Marlene Pacca de Lintz.
A possibilidade em projetar a obra de Lobato é comemorada pelos detentores dos direitos. Ela só é possível depois do fim da negociação que se arrastava desde 1998 com a editora Brasiliense, da qual o escritor foi sócio-fundador e deixou um contrato ‘ad infinitum’, ou seja, concedendo os direitos de editar todos os livros por tempo indeterminado.
Na editora Globo, a obra foi “repaginada”, recebeu novo tratamento gráfico e ilustração. A previsão é relançar até 2009 todos os 56 livros de Lobato, entre infantis e adultos, além de adaptações em quadrinhos. As reedições seguem por contrato até 2018, quando a obra do autor cairá em domínio público.
“Agora, nas mão da Globo, tudo deve se desenvolver muito bem. O importante é que os livros estão recebendo o tratamento que merecem. A Brasiliense sempre achou que como o Lobato vendia, não precisava fazer anúncio ou pensar em novo formato gráfico. É merecido, Lobato foi um lutador”, reforça o neto.
Se “O Presidente Negro” emplacar na terra do Tio Sam, Lobato terá o seu sonho realizado 82 anos depois do primeiro lançamento da obra.
É que ele nutria entusiasmada admiração pelos Estados Unidos e chegou, inclusive, a ser nomeado adido comercial em Nova York pelo presidente Washington Luís, em maio de 1927.
Lobato mudou-se para aquele país, fundou a editora Tupy Publishing Company e enviou exemplares da obra aos editores americanos, mas não obteve sucesso em sua empreitada, pois a crença era de que o enredo de “O Presidente Negro” só agravaria as tensas relações entre os negros e brancos.
“Quando suas obras foram lançadas, o mercado editorial estava começando no Brasil. Os livros, na época, eram vendidos em farmácia. E mesmo assim ele conseguiu lançar-se fora do país. Em 1935, publicou ‘Narizinho: a Menina do Nariz Arrebitado’, em Buenos Aires, pela editora Claridad. Optamos por rescindir o contrato em 1962 ou 1963, também por percebermos que não havia atenção necessária. A mesma obra chegou a ser publicada em italiano, uma graça de edição, com a colaboração e incentivo de José Mindlin”, diz Rodrigo Lobato.
EUGENIA
Se em terras estrangeiras Lobato está sendo tratado como profeta, no Brasil especialistas atribuem ao escritor a construção de um enredo racista.
É que o romance prega as idéias do pensamento eugenista, ciência que pregava o controle social para melhorar as qualidades raciais das futuras gerações (física ou mentalmente) e que acreditava na purificação das raças para solucionar os males da humanidade.
O negro da história de Lobato possui a pele esbranquiçada, já que a ciência desenvolveu uma loção para alterar o pigmento da pele. O que o diferencia do homem branco é apenas o cabelo.
Além desse ponto “polêmico”, o presidente negro não chega a tomar posse por causa da ação dos homens brancos, que promovem um golpe para que eles desaparecessem do planeta ao utilizar uma loção para alisamento do cabelo.
“Desconfiamos que tempo, espaço e enredo são pretextos habilmente planejados por Monteiro Lobato para se posicionar ante a questão racial de sua época, tanto do Brasil quanto dos Estados Unidos”, cita Petrônio Domingues, no livro “Histórias Não Contadas — Negro, Racismo e Branqueamento em São Paulo no Pós-abolição”.
Apreciador da obra de Lobato, o jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo aponta que a questão racial presente na obra exalta um dos traços mais característicos da doutrina nazista.
“Se Obama aponta para a afirmação dos negros, o romance de Lobato vai no sentido contrário. Em vez de celebrar a igualdade, ou, como quer o candidato à Casa Branca, a superação da questão racial, o que comemora são as teses raciais que, com a ascensão dos nazistas ao poder, sete anos depois de publicado o romance, triunfariam na Alemanha”, cita Toledo, em artigo publicado em outubro, na revista Piauí, sob o título “Visionário espiroqueta”.
No entanto, não é possível afirmar com convicção se Lobato carregava o pensamento racista ou se apenas reproduzia em seus textos o pensamento predominante da sociedade da época.
A eugenia estava em plena ascensão em 1926 e possuía em nosso país até uma entidade representativa, a Sociedade Eugênica de São Paulo.
Para Rodrigo Lobato, que reconhece o pensamento eugenista do avô, o que interessa são as previsões presentes na obra. “O Lobato era neto do Visconde de Tremembé, fazendeiro que possuía escravos em sua propriedade. Portanto, Lobato conviveu com os escravos. Sei que eles tiveram várias empregadas descendentes de escravos. A questão da eugenia, naquela época, já causava polêmica e vai causar sempre. O que interessa neste momento é o caráter profético da obra.”
Na contramão daqueles que classificam a obra como racista está a professora de inglês Telma Mc Leod, que possui um exemplar de “O Presidente Negro” datado de 1945, herdado do pai, Leonidas Casal.
O livro possui 198 páginas e foi lançado pela editora Clube do Livro e como consta nas primeiras páginas foi “graciosamente” cedido pelo escritor à editora. “A obra não possui chavões e tira-nos do lugar comum. Não há pieguice no desfecho e mostra que a ação humana pode acarretar conseqüências inimagináveis. É preciso lê-la sem idéias preconcebidas”, destaca Telma, que teve contato com a história aos 18 anos e faz recomendações positivas. “Lobato é atualíssimo e profético, fala sobre o feminismo e até previu a internet. Há 70 anos já falava em preservação da natureza. Ele aponta que pode haver um mundo melhor.”