segunda-feira, 28 de junho de 2010

sábado, 26 de junho de 2010

Como o Twitter tem sido utilizado para criar e recriar cultura

No futuro, todos teremos os nossos 140 caracteres de fama, diria Andy Warhol, se vivo fosse e participasse de um site que já conta com mais de cem milhões de pessoas no mundo. O Twitter, espécie de microblog em que seus usuários podem escrever textos de até 140 toques, surgiu em 2006 como uma rede social para trocas de mensagens curtas - chamadas "tweets" -, quase instantâneas, com grupos de amigos - chamados "seguidores". Desde então, a criatividade dos internautas fez do Twitter uma aplicação de marketing, de pesquisa de opinião, de campanha política, de jornalismo ou de mobilização. O Twitter, como bem compreenderia Warhol, tornou-se pop. E se tornou, também, uma ferramenta utilizada para gerar cultura e produzir arte.
O valor diferenciado do Twitter para a cultura contemporânea ainda é incerto, e há quem questione a inovação das manifestações artísticas do microblog. Mas, recentemente, o site recebeu respaldo de artes tradicionalmente mais nobres. A Biblioteca do Congresso, instituição bicentenária localizada em Washington, Estados Unidos, anunciou no início de abril que pretende adquirir e arquivar todos os textos já publicados no microblog. "Todos" quer dizer tanto a comemoração de Barack Obama na vitória das eleições presidenciais americanas ("Nós acabamos de fazer História", escreveu) quanto aquela conversa sem pé nem cabeça sobre futebol, "Big Brother" ou "Lost". Apesar de a maioria dos mais de 50 milhões de tweets diários ser aparentemente irrelevante, o objetivo da biblioteca é tentar mapear os costumes dos usuários de internet. E isso não tem nada de irrelevante.
- É preciso desfazer certos dogmas antimodernidade, de que a internet é destruidora de cultura. Isso é uma visão conservadora e um tanto anacrônica - diz Marcos Vinicios Vilaça, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).
A ABL foi outra instituição que percebeu o valor do Twitter. Em março, a Academia lançou um concurso de microcontos com o limite de 140 caracteres. O prazo de inscrição vai até 30 de abril, e até agora cerca de 1.500 textos já foram enviados para a avaliação dos acadêmicos. O primeiro lugar vai ganhar um "Vocabulário ortográfico da língua portuguesa", o segundo, um minidicionário da ABL, e o terceiro, um minidicionário do imortal Evanildo Bechara.
- Eu estou muito satisfeito com a repercussão e com a compreensão do concurso. Pode parecer uma coisa afrontosa à intelectualidade escrever um conto com tão poucos toques, mas a lógica foi outra: muita gente valorizou a ideia como um esforço de síntese - explica Vilaça. - Para mim, o mais importante é ofertar uma nova oportunidade de se ter acesso à Academia, e uma nova possibilidade de se ter acesso à produção cultural.
Mas talvez o modelo mais significativo seja o proposto pela Royal Shakespeare Company, uma das mais importantes companhias de teatro do mundo. Há poucos dias, o grupo inglês criado em 1879 se juntou à empresa de conteúdo para celulares Mudlark e começou a reescrever "Romeu e Julieta", de Shakespeare, pelo Twitter. O projeto se chama Such Tweet Sorrow (algo como "Este lamento gorjeado"). O resultado, um sacrilégio para os puristas, mas perfeitamente moderno para adolescentes, é sem dúvida hilário. O nome de Julieta Capuleto na ferramenta é @julietcap16 . Ela segue as páginas de Shakira, Justin Timberlake, Alicia Keys e de seu primo, Teobaldo Capuleto. Anteontem, ela escreveu sobre a festa que estava prestes a começar em sua casa, justamente aquela em que se apaixona por Romeu - ao menos na versão oficial. "Os garotos estão aqui? Ah, meu Deus", disse Julieta, toda serelepe. Já Romeu Montecchio atende pelo apelido @romeo_mo . Muitos de seus textos são conversas com o amigo Mercúrio sobre seu prazer em jogar o videogame Xbox. Antes da festa na casa dos Capuleto, ele escreveu: "Esperando pelo táxi com Mercúrio e com uma bela cerveja. Dias felizes".
O bacana da adaptação é poder acompanhar o ponto de vista de cada personagem, numa linguagem coloquial e contemporânea. São atores da própria Royal Shakespeare Company que escrevem os textos no Twitter, a partir de um roteiro elaborado pela companhia. Julieta, por exemplo, é vivida por Charlotte Wakefield, atriz que recentemente interpretou a Wendla de "O despertar da primavera", no West End londrino. Suas aventuras, da paixão por Romeu até o fatídico destino dos amantes, ainda vão durar três semanas.
- O Twitter é um instrumento para desenvolver tramas, enredos, de certa forma provocar, exercitar malícia e ironia. Ele cria duplicidade, ambiguidade. Nos ensina a não ser tão lineares - diz o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar.
Em 2009, Carpinejar lançou o livro "www.twitter.com/carpinejar" (Bertrand Brasil), uma compilação de 416 textos escritos em seu Twitter. Hoje, ele continua usando a ferramenta e já conta com 25,4 mil seguidores. Entre suas últimas mensagens estão "Canalha pede desculpa antecipado. Cafajeste pede desculpa tarde demais", "Gaúcho quando vem ao RJ tem a sensação que passou a vida inteira num internato" e "Quando eu me tiro para dançar nunca me devolvo".
- Eu coloco lampejos do momento. Eu acredito que o Twitter serve para sublimar detalhes e revelar insignificâncias. É um rascunho, mas com a diferença de ser digital. A Clarice Lispector, em "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres", usou como rascunhos várias de suas crônicas. Ela transformou crônicas da primeira pessoa para a terceira pessoa. É possível usar o Twitter para fazer o mesmo - explica. - Acho que será natural que eu publique um segundo livro com textos do Twitter. Afinal, o veneno tem que ser impresso.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

A fotografia na era das imagens manipuladas - por Luciano Trigo

Vik Muniz responde a críticas, explica sua relação com a cultura de massa e diz que o mercado de arte contemporânea é como um jogo
Reconhecido internacionalmente como o mais importante (e valorizado) artista plástico contemporâneo brasileiro, Vik Muniz se destaca também pela reflexão teórica que desenvolve sobre a fotografia, meio e suporte de seus trabalhos. Nascido em São Paulo em 1961, ele já declarou que demorou muitos anos para “fazer sucesso da noite para o dia”: iniciou a carreira na década de 1970, mudou-se para Nova York em 1983 – após levar um tiro acidental, num episódio que ganhou contornos de lenda - mas somente em 1995 atraiu a atenção da mídia, com a série Crianças de Açúcar. Hoje suas fotografias integram os acervos dos mais importantes museus do mundo, e sua última retrospectiva no Brasil – no MAM-RJ e no MASP, em 2009 - recebeu mais de 100 mil visitantes. São imagens que, construídas com materiais “pobres” e inusitados – chocolate, brinquedos, sucata, poeira – promovem uma revisão constante da História da Arte, de Dürer a Andy Warhol, provocando um estranhamento capaz de agradar aos mais diferentes olhares.

Felizmente para seus admiradores no Brasil, o ritmo das exposições e do lançamento de livros de arte sobre a obra de Vik Muniz tem sido intenso nos últimos anos. Em fevereiro deste ano o documentário Lixo extraordinário, que ele protagoniza, foi premiado no Festival de Berlim, e atualmente um trabalho seu pode ser visto todas as noites na televisão: a abertura da telenovela Passione - que provocou algumas reações negativas no meio artístico. Nesta longa entrevista exclusiva, Vik comenta a situação da arte contemporânea, analisa o poder dos curadores e responde às críticas à sua aliança com a cultura de massa.

- Você lançou recentemente o catálogo Vik Muniz – Obra Completa. Um catálogo tem, por definição, uma característica de inventário, mas me parece que a sua própria obra tem um sentido de “inventariar” movimentos, artistas e obras do passado da arte. Você concorda? Como analisa isso?

VIK MUNIZ: Logo quando comecei a imaginar um trabalho com imagens, minha insegurança fez com que eu partisse das ideias mais simples possíveis. Comecei a trabalhar com a imagem ainda enquanto ideia ou memória, antes mesmo que como traço ou resíduo. Eu acredito que este rigor auto-imposto em organizar a minha pesquisa de uma forma ordenada vinha principalmente do medo de começar pelo fim e depois não ter nada mais para dizer, do medo de uma carreira curta e insignificante. A longo prazo, a função mais importante do artista é gerenciar a criatividade, para que a percepção da sua obra como um todo seja coerente para aqueles que acompanham o trabalho, sem sacrificar a naturalidade e espontaneidade do processo criativo. Este aspecto quase taxionômico do meu trabalho se deu em parte pela maneira como eu comecei a mexer com o assunto das imagens, mas também tem a ver com a maneira como eu procuro entender as coisas. Sou um pensador organizado, econômico, para não dizer preguiçoso. Tenho uma memória muito fraca e por isso sinto necessidade de organizar a informação de um modo sólido. Na verdade eu curto muito descobrir aos poucos essa engenharia do conhecimento adquirido; é algo que a principio só servia para mim, mas que, aos poucos, eu venho implementando como mais uma estratégia de trabalho.

- Você usa de maneira original diversos materiais e informações, mas ao mesmo tempo passa a ideia de um controle absoluto sobre o resultado. Num momento em que a técnica muitas vezes é posta em segundo plano, que importância você atribui ao domínio da linguagem, dos materiais e da expressão?

VIK: A técnica, o controle, já tiveram lugar mais importante no meu processo de trabalho. Depois de mais de 20 anos de carreira, eu vejo a coisa mais ou menos assim: quando o artista é jovem, ele possui uma necessidade imensa de mostrar para o mundo quem ele é, seu intelecto, sua cultura, criatividade, talento e destreza manual. O artista jovem quer mostrar ao mundo que, em meio a tantos outros artistas jovens, ele é o melhor, um candidato a um lugar de destaque na história e na memória popular. À medida que o tempo vai passando, e este artista jovem vai testando seus talentos com certo sucesso em meio a um publico especializado, ele começa a entender que mesmo um grande cérebro é sempre um grande “um”, e que o segredo da continuidade evolutiva de seu trabalho reside em uma aprendizagem fria e desapegada de como analisar a opinião publica. Para mim esse momento marca a minha maturidade intelectual; saber que estou sempre fazendo a metade do trabalho, e que o resto quem faz é o publico. Reconhecer isso requer uma certa humildade, que os jovens não possuem. A partir dai você começa escutar o mundo à sua volta, as conversas no quiosque, as crianças, seus assistentes, os colecionadores, os guardas do museu. Ao contrario de antes, o mundo passa a refletir o seu trabalho. Isso gera uma satisfação indescritível e uma responsabilidade avassaladora. É desse momento, quando qualquer pessoa pode entrar em seu estúdio e fazer algo que você faz, é dessa vulnerabilidade que eu tiro proveito para tecer conceitos mais sutis, mais independentes. Eu não consigo mais me enganar com a ideia que ninguém é capaz de fazer o que faço, mas sei ter sido o único capaz de ter feito o que fiz na mesma ordem e proporção.

- Sua obra é toda ela figurativa, mas hoje a figuração é tratada muitas vezes com reticência por curadores e críticos. Como enxerga isso?

VIK: O meu trabalho começou a ganhar forma durante os meados dos anos 80, em Nova York. Coincidentemente, ao mesmo tempo em que alguns artistas começaram a tratar o mundo da mídia como paisagem, uma forte corrente de abstração tomou conta do mercado, com artistas como Peter Schuyff, Peter Halley, Jonathan Lasker, Phillip Taaffe e Ross Bleckner. Enquanto a maioria das pessoas via um certo antagonismo nos dois discursos vigentes, eu os achava perfeitamente complementares. A nova abstração, ou Neo-Geo, se distinguia categoricamente da ultima onda de abstracionismo, por ser completamente despida de esoterismos vulgares ou ambigüidades semânticas como “valores espirituais”, entre outras utopias estéticas. Essa abstração era, de certa forma, cínica e ácida e, ao invés de apontar para um universo de espiritualidade, falava diretamente da pobreza sedativa do nosso imaginário. Eu acredito num projeto realista, no qual o ilusório caracteriza o real através de suas ferramentas e artifícios. Uma abstração capaz de revelar a programação visual do homem moderno não parece ser um projeto menos importante. Uma das coisas que aprendi durante esse período de contraste entre o figurativo e o abstrato foi dosar essas noções em quantidades idênticas quando realizo um trabalho. Uma foto de chocolate é representacional somente enquanto o espectador se esquece do chocolate, uma vez que, quando a atenção passa para o material, a imagem se dissolve em uma espécie de falsa abstração. Uma imagem de uma substância remete à mesma através de significantes artificiais, como a memória do chocolate. Visualmente, porém, aquilo não passa de uma gororoba, que pode ou não ser chocolate de verdade.

- Você se considera um artista pós-moderno, no sentido de realizar uma reciclagem de questões da História da Arte? Independente da resposta, o que significa para você o pós-modernismo? E o que pensa da tese do “fim da história da arte”?

VIK: Se todo mundo continuar querendo escrever o parágrafo final da História da arte, a gente ainda vai ter História por mais 5 mil anos. A História moderna foi criada com o objetivo de contextualizar o presente dentro de uma ordem pré-estabelecida de eventos, na qual o presente parecia mais ser uma conseqüência do futuro que do passado. A derrota das utopias e do pensamento idealista só implicam o fim de um tipo especifico de se apresentar a História. O presente intenso e multiplicado parece convergir diversos passados, sem nunca apontar para um futuro preciso. É impossível não se inspirar no caos temporal do mundo contemporâneo. Um mundo de memórias instantâneas, onde gerações diferentes escutam as mesmas playlists, curtem os mesmos filmes e leem os mesmos textos. A total disponibilidade da memória sensorial faz com que o passado seja uma parte constante do nosso presente. Nenhum projeto realista estaria completo sem dar uma atenção especial a essa confusão, a essa complexidade incrível de como o presente é continuamente permeado pelo passado no nosso dia-a-dia.

- Fale brevemente sobre como você enxerga a relação da fotografia com a arte contemporânea?

VIK: A fotografia modificou a maneira como o homem moderno passou a enxergar o mundo. Historicamente falando, se a fotografia não houvesse sido inventada, a arte de hoje seria bastante diferente. Contudo, a importância do advento da fotografia parece impactar o curso da visualidade contemporânea numa escala muito menor do que a sua recente obsolescência. Um século e meio após a invenção da fotografia – em 1992, para ser mais preciso – foi criada uma poderosa tecnologia que permitiu a popularização de técnicas de manipulação de imagens a um nível além do discernimento visual imediato. O desenvolvimento de tecnologias como Photoshop libertou a fotografia de sua condição de reflexo verossímil da experiência humana, e ela passou a se desconstruir da mesma forma como ocorreu com a pintura, após a sua invenção. Trabalhar com fotografia hoje em dia acarreta a mesma complexidade filosófica que provavelmente ocupou os pensamentos de pintores do século retrasado. O que fazer com um meio que, embora tenha se tornado obsoleto, continua sendo o alicerce que suporta a visão atual? Alguns fotógrafos partem para o atomismo, como os impressionistas e pontilhistas, outros para a abstração, para o surrealismo, o mecanicismo – e a fotografia, finalmente se descobre como veiculo, independente da sua responsabilidade com o real. Eu não imaginaria melhor época para trabalhar com uma disciplina intelectual do que durante a sua liberação da realidade. Nessa equação, eu me vejo com as mesmas preocupações que afetavam Courbet, que professava o paradoxo de um realismo pictórico em um mundo pós-fotográfico.

O critico americano Andy Grumberg, em seu ensaio seminal A Crise do Real, narrou com precisão a convergência simultânea entre fotógrafos tradicionais que começaram a se interessar por aspectos mais conceituais ou “artísticos” em sua pesquisa de trabalho e artistas que instintivamente começaram a se servir da fotografia, não somente como instrumento de pesquisa, mas como resultado final do trabalho. Segundo Grumberg, esse encontro começou a ser esboçado durante os anos 70 e culminou nos meados dos anos 80 com a chamada “Pictures Generation”. Eu, particularmente, vejo como apoteose desta convergência o aparecimento de papéis fotográficos de grande escala, o que possibilitou uma igualdade ergonômica da maneira como as pessoas observam fotografias e pinturas em casas, galerias ou museus. A geração de Ruff, Gursky e Jeff Wall, entre outros, foi responsável também por uma equiparação mercadológica do objeto fotográfico em relação à pintura e a escultura. Hoje em dia, toda galeria importante, em qualquer lugar do mundo, representa fotógrafos com o mesmo empenho e dedicação com que representa outros artistas, e eu acredito que o mercado é a influencia mais importante por trás desta tendência.

Quais são os limites da apropriação? O que acha, por exemplo, do trabalho de Richard Prince, quando ele reproduz imagens publicitárias, ou de Sherrie Levine, quando ela reproduz fotografias alheias?

VIK: A apropriação é uma postura conceitual em relação à cópia, pois questiona a propriedade intelectual do objeto ou da imagem. No meu trabalho, eu jamais questiono a importância ou o mérito da fonte. Minha função remete o publico diretamente na direção do original. A minha preocupação não é com a autoria e sim com a evolução dos rituais visuais. Uma forma de avaliar esta evolução é trabalhando com imagens já exauridas pela reprodução excessiva. Só depois de ver uma imagem que a gente está careca de conhecer “como se fosse pela primeira vez” é que a gente se dá conta de como a nossa percepção é tão mutante quanto os avanços tecnológicos de produção e disseminação de imagens. Eu não aproprio, eu copio, e a cópia, ao contrário da apropriação, ao invés de tentar remover, cimenta o papel do original na história das imagens. Gombrich chamava o processo de reprodução acadêmica de “Schemata”, adaptando um conceito anterior do psicólogo britânico Frederic Barlett . Eu dei aula de desenho acadêmico por mais de dez anos e acredito que a “Schemata” nos ensina muito mais que o traçado e a linha dos grandes mestres. Ela aponta principalmente para a codependência de formas simbólicas no grande plano da História através da representação. Você começa a ver a razão pelas quais algumas imagens se tornam irrelevantes e outras “renascem” a partir de contextos favoráveis. A cópia é um elemento fundamental na História das imagens.

- Da fotografia do Pollock refeita com chocolate ao Lucio Fontana refeito com pigmentos, passando pelos retratos de confete, você repete o procedimento de representar/re-apresentar imagens/obras com materiais inusitados. Não teme que isso se torne repetitivo? Ou isso não importa?

VIK: A noção de “representar repetitivamente imagens conhecidas com materiais inusitados” é uma simplificação cruel e reducionista do meu trabalho. O mesmo seria simplificar a obra de Beatriz Milhazes à “persistentemente repetir padrões decorativos com tinta acrílica” ou a de Cildo Meireles como “esboçar questões sobre o sistema de valores se servindo de acumulações de objetos” Todo mundo quer reduzir o trabalho do artista a um resumo de uma linha, e quando conseguem, por subtração, omissão calculada ou por pura ignorância, acreditam ter o assunto como encerrado. Mondrian pintou quadrados quase uma vida inteira, Morandi, os mesmos potes, Ryman só telas brancas, e Flavin, só tubos fluorescentes. Hoje em dia, o pessoal está confundindo a Bienal com o Fashion Week; uma coleção nova a cada seis meses. Isso é uma cobrança fútil; o artista, ao longo da carreira, acumula estratégias e preocupações que revisita com frequência. Não existe nenhuma necessidade de se abandonar tais convicções, tanto porque, para o público cuja atenção curta requer uma sucessão ininterrupta de novidades, existe sempre a possibilidade de descobrir novos artistas. Uma das preocupações centrais do meu trabalho reside, sim, na relação entre o material e a imagem, na definição continua dessa ligação sublime entre o material e o mental. Isso tem sido uma pesquisa longa e engajada – e também completa, no sentido em que procurei esgotar em cada série todas as nuances e sutilezas que a situação propiciava. A escolha de trabalhar em séries também tem a ver com a criação de um modo de trabalho que possibilita uma evolução sutil. A cada obra de uma série é possível aplicar o conhecimento adquirido em obras seguintes. Eu não procuro realizar obras-primas ou revoluções em meu trabalho; eu vejo uma evolução discreta de pequenas ideias e conceitos que se alinham e se aprimoram. Pode parecer repetitivo dependendo da generosidade do espectador, mas cada trabalho lida com uma pequena ideia diferente.

- A ideia da representação me parece ser o grande tema do seu trabalho, impressão reforçada pelos seus textos teóricos. Sobre isso, pergunto: você no fundo não seria um artista “conservador” (no melhor sentido da palavra), ligado à tradição, mais do que um artista ligado à matriz conceitual que prevalece hoje, que substitui a representação pela designação como procedimento artístico?

VIK: Eu me vejo bastante conservador, no sentido em que sempre estou procurando um sentido evolucionário, em vez de revolucionário, no plano do desenvolvimento da relação do ser humano com a imagem. Você também tem razão em me caracterizar como tradicional; por prudência ou covardia, eu nunca procurei ser um artista diferente. Eu também não vejo uma relação anacrônica entre representação e designação, quando se trata de noções codependentes tanto no plano lingüístico como no modus operandi da produção artística contemporânea. O que quero dizer é que um artista conceitual não está proibido de se servir da representação como tema principal de seu trabalho, muito menos se limitar a determinados processos simplesmente porque os mesmos se relacionam à tradição.

- Complementando: você se considera um artista afinado com as tendências dominantes na arte contemporânea? Em que sentido?

VIK: Eu não sei se saberia dizer quais são tais tendências dominantes. Quando dirijo, olho para frente e pelos retrovisores, diretamente, nunca para os lados. Eu nunca me preocupei com tendências, movimentos ou modismos. No momento em que você começa a se preocupar com um contexto contemporâneo para o seu trabalho, você já está correndo atrás do prejuízo. A contemporaneidade quem faz é quem não está distraído com a História recente, mas focado em um presente intenso e fugaz. Sempre fui um artista de nicho. Eu me preocupo com as minhas coisas e sigo fazendo o que sempre fiz.

- Você é um caso raro no Brasil de artista contemporâneo que escreve (e muito bem). Não acha que fazem falta hoje uma reflexão e um debate mais amplos sobre os rumos da arte? Onde está a produção teórica que endosse a arte que se faz no Brasil hoje?

VIK: Embora goste muito de escrever, sempre acreditei ser completamente inapto para escrever sobre arte com autoridade. Outro dia eu comentava com a minha ex-mulher, a artista Janaina Tschape, que reclamava do fato de que, depois que voltou a pintar, a critica escrevia menos sobre seu trabalho; quando se escreve uma critica sobre um vídeo ou fotografia, a facilidade de ter um tema como ponto de partida, a possibilidade de uma descrição em vez de uma avaliação estética, facilita enormemente o trabalho do critico, ou melhor, nesse caso, do jornalista. Escrever sobre uma pintura, no melhor estilo de John Ruskin, Herbert Read ou Meyer Shapiro requer uma sensibilidade poética e um vocabulário de ferramentas descritivas tão vasto quanto os do pintor da obra. É raro ler uma descrição de uma pintura baseada em composição, contraste, cor, em vez de valor de venda. Na euforia da ultima bolha, até a critica mais reputada caiu nos charmes do surrealismo ditado pelos leiloeiros. Isso, para mim, foi o golpe de misericórdia na credibilidade da critica internacional. Não interessa o quanto ele é derivativo e repetitivo, Damian Hirst, mesmo sem um currículo institucional decente, ao se transformar em um fenômeno de mercado se tornou imune a toda e qualquer critica: é como se nunca ninguém tivesse visto uma caveira antes. A grande sacada de Hirst é exposição da supremacia desvantajosa do marketing para com a critica. O coitado do Robert Hughes quase foi assassinado por tentar expor a indigência intelectual da obra de Hirst como objeto e não como performance. É engraçado, eu ando lendo muito pouca critica; uma vez que você percebe a agenda do critico, dá até para prever o que ele vai escrever. Isso não quer dizer que algumas agendas não sejam mais amplas, ambiciosas e válidas. Por exemplo, eu não deixo de ler nada que o Peter Schjeldahl escreve. O Brasil também tem ótimos escritores, talvez mais parceiros e generosos para com o artista e menos atrelados a agendas pessoais.

- O que acha desse esvaziamento do papel do crítico de arte no Brasil e no mundo? A que atribui esse fenômeno?

VIK: Seria cruel culpar a critica pela sua atual irrelevância. É o universo da mídia que tem se transformado e com isso tem também modificado as atitudes do consumidor de mídia em geral. Hoje em dia, a navegação é o próprio conteúdo; é a colagem das escolhas e narrativas pessoais que vai ditar a relação, baseada em independência intelectual, que o individuo mantém com o mundo. Embora a adesão a canais específicos de informação ainda seja um comportamento revigorante, a disponibilidade de canais é tamanha, que a importância dos mesmos é diluída. Com o advento da internet, todo mundo se tornou um critico, um curador e um editor. A participação do individuo na textura cultural da sociedade criou uma espécie de fragmentação, na qual conceitos e discursos perderam a sua definição, são como nuvens. O que antes era um manifesto hoje em dia é uma tendência, e o critico funciona na posição fatalista de um meteorologista cultural. Ele é capaz de dizer se está chovendo e onde, mas perdeu a sua capacidade de fazer chover. No Brasil, o consumo e envolvimento público com a arte contemporânea é ainda um conceito em formação, é algo vivo e muito interessante como laboratório. Ao contrário da Europa ou dos Estados Unidos, a mídia de massa dedica espaços generosos à arte contemporânea, mas o público em geral apresenta uma certa carência de informação especializada para realizar escolhas de programas culturais: ainda existe a demanda de uma orientação especializada. O papel do crítico nesse estágio de desenvolvimento cultural é muito importante e deve ser executado com ambição, visando à formação de uma relação de dinamismo e engajamento do público com a paisagem cultural, e não simplesmente cultivar a opinião pública em benefício de uma agenda particular.

- Waltercio Caldas já usou a expressão “Curadorismo” para se referir ao crescente poder dos curadores no sistema da arte. Como você vê isso?

VIK: O Waltercio tem razão, Mas o fato não é tão preocupante, porque hoje em dia tem mais curador do que DJ. No futuro cada artista vai ter o seu., como um tradutor; o artista balbucia uns grunhidos grotescos e babados por de trás de uma focinheira à la Aníbal Lecter, e o almofadinha de preto com gola rolê ao lado traduz tudo em um jargão pedante e cheio de footnotes, mais ininteligível do que o grunhido babado. Essa é a mais perfeita parceria entre o estereótipo da razão e o da sensualidade. Eu acho isso muito divertido. O mais engraçado ainda é que eu também sou curador. Outro dia eu bebi relativamente em demasia e me engajei numa briga ferrenha com um camarada que tentava me convencer de que artista não entende nada de arte. Só quando eu falei para ele que eu havia sido curador de exposições no Metropolitan, no MoMA e no Musée d’Orsay, ele começou a respeitar o que eu estava dizendo e até me pediu desculpas. Era como se eu tivesse mostrado a ele que, em vez de bandido, eu era delegado da policia. O pintor americano Ross Bleckner disse alguns anos atrás uma frase que ficou na minha cabeça: “Van Gogh fucked the rest of us.” A ideia de um artista “além do seu tempo”, marginal, mal ajustado e incompreensível, de uma certa maneira prevalece na imaginação pública, criando um espaço para a atividade parasítica de alguns desses “profissionais”. A simples ideia da necessidade de um intermediário entre qualquer artista e seu público me parece sinistra e predatória, porém muito da culpa do atual poder do “curadorismo” vem do próprio artista contemporâneo, que, ignorando, desconhecendo e alienando seu público, prefere se esconder atrás da artificialidade segregadora que certos curadores propiciam. Eu não posso conter essa impressão que tenho de que a função desse tipo de curador é de elevar a posição do artista por meio do detrimento da sua relação com o público. Eu às vezes saio de exposições sem um maior conhecimento da obra de fulano, porém absolutamente convencido da minha incapacidade de compreendê-la. A função do curador hoje em dia seria garimpar a complexidade holográfica do mundo da informação, à procura de direções e convergências, ou re-organizar a informação acumulada ao longo da História de acordo com a sensibilidade e percepção contemporânea. Eu, particularmente, curto muito os projetos de grande escala, cujo tema é abordado de uma forma multidisciplinar e atemporal, como os blockbusters de Jean-Hubert Martin ou Jean Clair.

- Ao longo da arte moderna,movimentos de vanguarda contestavam as instituições (museus, galerias etc) e o mercado, mas a arte contemporânea parece se ter rendido totalmente a ambos. Você concorda? Como enxerga essa questão?

VIK: Os movimentos de vanguarda colocavam em xeque um tipo diferente de instituição das que temos hoje em dia. Não havia um mercado de arte internacional, não havia a mesma mobilidade, a mesma distribuição de informação. A resistência se dava a um nível mais íntimo, local, onde essa argumentação era baseada em um número limitado de vetores. Artistas alemães debatiam instituições alemãs, dentro do contexto político e cultural daquele país. O mesmo faziam os franceses, os italianos, os russos e assim por diante. A cultura de consumo, sendo o órgão motor da sobrevivência do homem pós-moderno, infiltrou as bases do pensamento contemporâneo em todos os setores de atividade cultural, suprimindo utopias e idealismos. O foco da cultura atual trata da fabricação e satisfação de desejos artificiais, e isso inclui o desejo nostálgico do engajamento artístico no plano político.

Por outro lado, uma das características mais lamentáveis do modernismo era de confundir definição com conceito. Muitos artistas estavam tão ocupados em estabelecer o que era a arte moderna que mal tinham tempo para fazê-la. Hoje em dia essa preocupação não existe ou, se existe, existe de uma outra forma. Não são mais definições ou conclusões que movimentam o processo artístico, e sim dúvidas e insatisfações. Hoje em dia, as instituições parecem mais refletir as preocupações e ambições do artista do que representar um pólo de resistência ao desenvolvimento criativo.

- Você é o artista brasileiro contemporâneo mais valorizado no mercado internacional. O sucesso gera algum tipo de pressão ou angústia? Fale sobre isso. De que maneira lida com isso e como você analisa as regras do mercado da arte hoje?

VIK: O mercado de arte é como um jogo. E, como em todo jogo, o jogador é recompensado pela sua produção e pela sua criatividade dentro de uma série de regras pré-estabelecidas. Só que chega uma hora em que ele não se contenta mais em disputar seu lugar na História com os demais jogadores e começa a tentar mudar as regras do jogo. Aí é que o jogo começa de verdade. Grandes artistas são aqueles que geraram revoluções sistêmicas na maneira não só como o mundo é visto pela arte, mas também como a arte pode ser vista pelo mundo. A pressão só existe enquanto você está submetido às regras. Uma vez que você descobre alternativas de atuação relevantes fora do sistema, você começa a relaxar e ver a profissão do artista de outra forma.

Em relação ao sucesso, tudo isso é muito relativo. Outro dia, a moça que vende pizza no Supermercado Zona Sul se debruçou no balcão após me entregar uma margarita gourmet, para me dizer baixinho: “Eu adoro o seu trabalho!” Isso para mim é sucesso. De resto, eu acredito que, com o passar do tempo, você adquire uma certa reputação, e embora tudo fique mais fácil, nunca tem aquele gostinho que tinha quando eu era jovem e bem mais inseguro. A vida profissional do artista é muito parecida com a sua vida real, a diferença é que, na vida profissional, a melhor parte é a adolescência.

Eu sou uma pessoa ilusoriamente previsível e descomplicada. Nunca li romances russos e por isso nunca tive que fazer análise. Eu acho graça ao ver a minha foto na coluna social, porque sempre me sinto um penetra. A única pressão que tenho é a de produzir obras para exposições – o que é a coisa que eu mais sei fazer e que me dá o maior prazer. Quem me conhece pessoalmente sabe que eu nunca reclamo de nada. Existem tantos problemas… Mas também tantas soluções…

- Já ouvi versões diferentes do seu início, de sua ida para os Estados Unidos etc. Você realmente levou um tiro ao apartar uma briga? E ganhou uma passagem para a América de presente, como forma de compensação? Ou isso é, em alguma medida, lenda?

VIK: A história é verdadeira. A multiplicidade de versões vem da inabilidade dos repórteres de escrever na velocidade em que falo. De qualquer forma, eu não me incomodo com o que a imprensa fala de mim, contanto que tudo continue a ser mentira. Falando em mentira, o incidente real aconteceu assim:

Eu estava em um evento social em São Paulo e, ao sair do evento, uma garota entrou na frente do meu carro e pediu desesperadamente para que eu apartasse uma briga em que um cara, munido de um soco inglês, agredia violentamente o seu namorado. Saí do carro, apartei a briga, o agressor saiu correndo, e o agredido, desconcertado e ferido, sacou uma arma do interior de seu carro, e descarregou-a em mim por engano. Um tiro somente atingiu minha perna, graças à falta de mira do atirador. Quando acordei no hospital, a primeira coisa que vi foi a cara enfaixada do meu agressor, que decentemente me pediu desculpas e se propôs a pagar as despesas hospitalares, além de me indenizar pelo acidente. Foi com parte desse dinheiro que eu consegui comprar uma passagem para os Estados Unidos.

- Para concluir: você criou a abertura da telenovela “Passione”. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, já existem reality shows de artistas plásticos. Fale sobre essa aproximação das artes plásticas com a TV e a cultura de massa: o que ela diz sobre a arte contemporânea?

VIK: A TV e a cultura de massa até agora só banalizaram a arte contemporânea. A vida de artistas ingleses e americanos é quase tão tediosa quanto a dos vigias noturnos. Você vai ver, ainda vão fazer um reality show sobre vigias noturnos. Fazer uma abertura de novela não tem nada a ver com a minha vida de artista. Eu iria preferir assistir A um campeonato de golfe numa televisão em branco e preto do que ver uma novela sobre a minha vida.

O mundo da arte é muito chato, mas o artista ainda tem a capacidade de mudar o mundo para que ele não seja tão chato quanto a sua vida pessoal. Levar o artista para a televisão é uma imbecilidade pior do que um show sobre mecânicos de motocicletas. Levar arte ao grande público é uma história completamente diferente, especialmente quando surge uma oportunidade única de apresentar o seu trabalho para um público diário de cerca de 50 milhões de pessoas, por dez meses. Isso é um Super Bowl a cada dois dias. A telenovela, além de representar uma grande característica da nossa cultura recente, e de ser também uma das únicas formas de mídia de massa interativa, tem um poder de distribuição que ainda não está na alçada das mídias de ponta, como a internet. É um fenômeno exclusivo da nossa cultura e único em sua dimensão. É incrível poder testar o meu trabalho através de uma estrutura tão poderosa. E eu achei muito interessante o fato de uma emissora de televisão chamar um artista plástico para fazer uma abertura de novela. Se eu, por algum orgulho besta, houvesse recusado, talvez a oferta não se repetisse para outros artistas. Ficou muito bom, e a experiência foi vantajosa para todos os participantes. Eu espero que eles continuem chamando artistas plásticos para fazerem suas aberturas.

Eu não vou negar uma certa tristeza para com a atitude provinciana de algumas pessoas, que não enxergam a importância da mesma arte que decora suas casas e os seus museus na vida de pessoas sem acesso a ela. Um curador me chamou de vendido, sem saber que tanto neste projeto quanto em qualquer outro de cunho comercial, eu dôo toda a minha parte para empreendimentos sociais que envolvem jovens e arte. Outro individuo disse que artistas de verdade nunca iam se submeter a tamanha humilhação. Warhol apareceu no “Love Boat” duas vezes, Jasper Johns e Frank Gehry nos Simpsons. E o pior, que artista de verdade não faz trabalho de encomenda. Artista de verdade não, mas Michelangelo, Velásquez, Ticiano, Rubens, Tiepolo e Picasso faziam. A grande crise de relevância que a arte contemporânea atravessa hoje em dia não é por falta de público, cultura ou interesse; é pelo preconceito conservador e paranóico de pessoas que vêem a cultura como um privilégio, e não como um direito.

LIVROS SOBRE VIK MUNIZ E SUA OBRA:

- Vik Muniz – Obra completa. Org. de Pedro Correa do Lago. Capivara, 798 pgs. R$ 112;

- VIK. Org. de Leonel Kaz e Nigge Loddi. Aprazível, 144 pgs. R$ 90;

- Reflex – Vik Muniz de A a Z de Vik Muniz. Cosac e Naify, 204 pgs. R$ 85

Publicado originalmente em Máquina de Escrever

Para ler José Saramago - por Luciano Trigo

Difícil e popular, escritor produziu seus melhores romances na década de 80
Nessa altura tudo já foi escrito sobre José Saramago, e mesmo assim será difícil fazer justiça à importância do escritor para a literatura, a língua e a cultura portuguesas. Sempre me surpreendeu um pouco a sua enorme popularidade, sendo difíceis os textos de seus romances, que exigem do leitor concentração e disposição para acompanhar as idas e vindas da narrativa, e sendo tão rígidas e dogmáticas – e às vezes ingênuas – as suas posições políticas.

Mas Saramago é sem dúvida autor de grandes romances, embora sua produção mais recente, na minha opinião, tenha perdido em qualidade o que ganhou em ritmo de publicação. Seus melhores livros, para mim, são os dos anos 80, começando por aquele que o apresentou aos leitores brasileiros, Memorial do Convento (1982), pioneiro na combinação de ficção e História que seria explorada com sucesso mais tarde por Umberto Eco e outros autores menos sérios. O protagonista desse romance é o Convento de Mafra, erigido em Portugal no início do século XVIII, em cumprimento de uma promessa feita pelo rei D. João V. Saramago introduz num painel histórico conveniente, com descrições notáveis de autor-de-fé, procissões de penitentes e casamentos de infantes da realeza, uma trama paralela, de um certo padre Bartolomeu que é ajudado, num empreendimento à margem do Santo ofício, pelo casal Baltasar e Blimunda. Nas entrelinhas o romance critica a exploração dos pobres pelos ricos e a corrupção – religiosa, no caso, mas no fundo inerente à natureza humana.

Saramago já tinha mostrado seu potencial em Levantado do chão (1980), que retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo, explorada por latifundiários e pelo clero conservador, do final do século 19 à Revolução dos Cravos. Seguem-se a Memorial do Convento três romances fundamentais, que consagram definitivamente o escritor: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986) e História do Cerco de Lisboa (1989).

Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago usa o heterônimo de Pessoa para criar o testemunho fictício de acontecimentos trágicos do ano de 1936, refletindo a atmosfera sombria produzida pela afirmação e crescimento do fascismo na Europa. Já adaptado para o cinema – como o mais recente Ensaio sobre a Cegueira, que resultou no filme Blindness - A Jangada de Pedra tem como premissa fantástica o descolamento da Península Ibérica do resto da Europa – e reflete a reação do escritor ao processo de unificação da Europa, com os países ibéricos colocados para escanteio, navegando à deriva e sem se identificarem cultural, social ou economicamente com o restante do continente. Saramago volta à fusão intertextual entre fantasia e realidade em História do Cerco de Lisboa, que intercala duas histórias: a de um revisor tipográfico que muda radicalmente o passado ao introduzir a palavra “não” no texto sobre cruzados e muçulmanos e da própria tomada de Lisboa que permite a Saramago explorar o conflito entre o mundo islâmico e o mundo cristão.

Publicado originalmente em Máquina de escrever

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A Moda na Copa do Mundo

Essa pode até ser a copa do mundo com a pior média de gols e com os jogos mais entediantes, no entanto é sem dúvida a edição mais fashion.

O fato dessa copa ser realizada no inverno, o que não acontecia desde a copa de 1976 na Argentina, também contribuiu para o “glamour”, fazendo os jogadores usarem camisa de manga longa e luvas, um charme.

Os uniformes das seleções, assinados por grandes marcas como Puma, Adidas e Nike, apresentam diversas tendências vistas nas passarelas. O tecido é super moderno, chamado tecido inteligente, absorve o suor e evita tanto a perda quanto o ganho de calor pelo corpo. As camisas apresentam cortes mais modernos e modelagens mais justas ao corpo.

A exceção foi seleção da Inglaterra que trouxe um modelo vintage recriando o uniforme da seleção campeã de 1966.

Há menos distrações nas camisas, como propagandas e até mesmo o numero de seleções com uniformes listrados diminuiu.

Nas cores houve uma predominância dos tons de azul, que deixou de ser exclusividade da Azurra italiana, e dos tons flúor como laranja da Holanda e o amarelo de Camarões.
Indo contra a corrente chamativa as seleções australiana e da Nova Zelândia apostaram em cores mais escuras.

A primeira com um uniforme em dois tons fechados de azul e a segunda num elegante uniforme preto com pequenos detalhes brancos.

As seleções portuguesa, uruguaia e mexicana saíram do lugar comum e inovaram seus uniformes.

O Uruguai trocou as listras brancas e azuis por um uniforme liso azul celeste (L-I-N-D-O).
O México trouxe o segundo uniforme negro adornado de verde e vermelho.

Portugal apresentou um uniforme branco com duas listras nas cores da bandeira portuguesa.

Os goleiros são um show a parte. Trocando as velhas calças de moletom por calças com um corte Skinner, nas cores a inovação foi sair do tradicional preto por cores de maior destaque como no caso do goleiro de Gana que optou por um tom de lilás, digno.

Um uniforme que vale ressaltar é o da Rússia, que infelizmente não conseguiu classificação para o mundial. Uma camisa vinho com detalhes dourados, tem como não amar?
http://twitter.com/CamilaAngel/

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Portugal e Espanha podem dividir cinzas de José Saramago

Corpo deve ser cremado; cinzas ficariam entre Ilhas Canárias e cidade natal. Autor de 'Ensaio sobre a cegueira' morreu nesta sexta por falência de órgãos.
Do G1, com agências internacionais

O administrador da Fundação José Saramago, José Sucena, disse em entrevista ao jornal português "Público" que é provável que o corpo chegue a Lisboa no sábado de manhã e fique no Salão Nobre da Câmara Muncipal de Lisboa. “Há algumas divergências de informação quanto ao funeral”, disse José Sucena. “Pilar del Rio [esposa] que irá dizer. Há quem diga que ele queria ser cremado e que as cinzas fossem espalhadas pela oliveira ao pé da casa [em Lanzarote], e há quem diga que essa informação está desatualizada e que ele gostaria de ficar em Lisboa.”

O velório do corpo de José Saramago já ocorre em Tías, na ilha canária de Lanzarote - o que indica que o escritor também pode ter dois velórios, um na Espanha e outro em Portugal. A solenidade ocorre na biblioteca Tías, que leva o nome do Prêmio Nobel de Literatura de 1998. O prefeito de Tías, José Juan Cruz, decretou três dias de luto como demonstração de respeito. O corpo do escritor está vestido com um traje escuro e ele está de óculos.

A escritora Nélida Piñon, que está na Espanha, vai representar a Academia Brasileira de Letras nos funerais do escritor.

A igreja perde um crítico

A notícia da morte de José Saramago repercutiu imediatamente em todo o mundo, inclusive entre representantes da Igreja Católica em Portugal, com quem o escritor mantinha uma relação conturbada por abordar de forma polêmica temas religiosos em obras como "O evangelho segundo Jesus Cristo", de 1991, e "Caim", seu romance mais recente, de 2009.

O diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, Padre José Tolentino, e o porta-voz da conferência, Padre Manuel Morujão, disseram que o país perde um "expoente" e que a igreja perde um crítico com o qual soube dialogar constantemente. "Seja como for, o diálogo nunca foi cortado e sempre foi possível", disse padre Manuel Morujão, sobre o escritor, que se declarava um ateu.

"[Saramago] combatia as religiões com fúria, dizia que elas nos embaçam nossa visão. Mesmo assim não consigo deixar de pensar que adoraria que neste momento ele estivesse tendo que dar o braço a torcer ao ser surpreendido por algum outro tipo de vida depois desta que teve por aqui", declarou o cineasta brasileiro Fernando Meirelles, que adaptou "Ensaio sobre a cegueira" para o cinema em 2008.

Leucemia e problemas respiratórios

Segundo sua mulher, a jornalista Pilar del Río, Saramago passou mal após tomar o café da manhã e recebeu auxílio médico, mas não resistiu e morreu. Ele sofria de leucemia e, nos últimos anos, havia sido hospitalizado em várias oportunidades devido a problemas respiratórios.

"Hoje, sexta-feira, 18 de junho, José Saramago faleceu às 12h30 horas [horário local] na sua residência de Lanzarote, aos 87 anos de idade, em consequência de uma múltipla falha orgânica, após uma prolongada doença. O escritor morreu estando acompanhado pela sua família, despedindo-se de uma forma serena e tranquila", diz uma nota assinada pela Fundação José Saramago e publicada na página do escritor na internet.

O escritor vivia em Lanzarote, ilha arquipélago espanhol Canárias, desde 1993 com sua esposa.

Expoente da literatura mundial

Saramago era um dos maiores nomes da literatura contemporânea, vencedor do prêmio Nobel de Literatura no ano de 1998 e de um prêmio Camões - a mais importante condecoração da língua portuguesa.

Entre seus livros mais conhecidos estão "Memorial do convento", "O ano da morte de Ricardo Reis", "O evangelho segundo Jesus Cristo", "A jangada de pedra" e "A viagem do elefante". O mais recente romance publicado pelo escritor foi "Caim", de 2009. Seu estilo de escrita era caracterizado, entre outras experimentações de linguagem, pelos parágrafos muito longos e o uso incomum de pontuações. “Sua literatura era densa e sofisticada e, mesmo assim, era lida por um grande público. Essa é a maior proeza de sua vida”, analisa o professor Frederico Barbosa, que ensinava Saramago em cursinhos de São Paulo e é também diretor do espaço cultural paulistano Casa das Rosas.

"Ensaio sobre a cegueira", que conta a história de uma epidemia branca que cega as pessoas, metáfora da cegueira social, foi levado às telas em uma produção hollywoodiana filmada pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles (de "Cidade de Deus") em 2008. O autor, normalmente avesso a adaptações de suas obras, aprovou o trabalho de Meirelles.

Saramago era considerado como o criador de um dos universos literários mais pessoais e sólidos do século XX e uniu a atividade de escritor com a de homem crítico da sociedade, denunciando injustiças e se pronunciando sobre conflitos políticos de sua época. Em 1997, escreveu a introdução para o livro de fotos "Terra", em que o fotógrafo Sebastião Salgado retratava a rotina do movimento dos sem-terra no Brasil.

No mesmo ano, uma exposição sobre o trabalho de Saramago foi exibida no Brasil. "José Saramago: a consistência dos sonhos" trazia cerca de 500 documentos originais e outros tantos digitalizados, reunidos em um formato que, misturando o tradicional e a tecnologia moderna, levavam o visitante a uma agradável e rara viagem pela vida e pela obra do escritor português.

Biografia
O português José de Sousa nasceu em 16 de novembro de 1922, na pequena aldeia portuguesa de Azinhaga, no Ribatejo, região central do país. Ficou mais conhecido, no entanto, pelo sobrenome de sua família paterna, Saramago, que o funcionário do Registro Civil acrescentou após seu nascimento.

Sua família mudou-se para Lisboa quando José tinha dois anos. Aluno brilhante, ele teve de abandonar o ensino secundário aos 12 anos, por causa da falta de recursos de seus pais.

Ateu, cético e pessimista, Saramago sempre teve atuação política marcante e levantava a voz contra as injustiças, a religião constituída e os grandes poderes econômicos, que ele via como grandes doenças de seu tempo.

"Estamos afundados na merda do mundo e não se pode ser otimista. O otimista, ou é estúpido, ou insensível ou milionário", disse em dezembro de 2008, durante apresentação em Madri de "As pequenas memórias", obra em que recorda sua infância entre os 5 e 14 anos.

Filiado ao Partido Comunista português

Autodescrito como um "comunista libertário", ele também provocou polêmica ao chamar a Bíblia de "manual de maus costumes". Ao longo de seis décadas de carreira literária, publicou cerca de 30 obras, entre romances, poesia, ensaios, memórias e teatro.

Saramago publicou seu primeiro romance, "Terra do pecado", em 1947. Em 1969, sob a ditadura salazarista, ele filiou-se ao Partido Comunista português. Depois de 47, ele ficou quase 20 anos sem publicar, argumentando que "não tinha nada a dizer". Na época, teve empregos públicos e trabalhou como editor e jornalista.

Entre 1966 e 1975, publicou poesia: "Os poemas possíveis", "Provavelmente alegria" e "O ano de 1993". Em 1977, publicou o romance "Manual de pintura e caligrafia". Depois, vieram os contos de "Objeto quase" (1978) e a peça "A noite" (1979).

Mas o reconhecimento mundial só chegou com "Memorial do convento", de 1982, a que se seguiu "O ano da morte de Ricardo Reis", dois anos depois. Os dois romances receberam o prêmio do PEN Clube Português.

Nobel e Camões ao desafeto da Igreja

Seu romance "O evangelho segundo Jesus Cristo", de 1991, provocou polêmica com a Igreja Católica e foi proibido em Portugal em 1992.

O romance mostrava um Jesus humano, com dúvidas, fraquezas e conversando com um Deus cruel. Em um dos episódios, Jesus perdia sua virgindade com Maria Madalena.

Um ano depois disso, ele decidiu se mudar para a ilha de Lanzarote, no arquipélago espanhol das Canárias, onde ficou até morrer, sempre acompanhado pela sua segunda mulher, a jornalista e tradutora espanhola Pilar del Río.

Em 1995, ganhou o Prêmio Camões pelo conjunto da obra e publicou "Ensaio sobre a cegueira".

Em 1998, ele recebeu o Nobel de Literatura. Na justificativa da premiação, a academia afirmou que o português criou uma obra em que, "mediante parábolas sustentadas com imaginação, compaixão e ironia, nos permite captar uma realidade fugitiva".

Seu último romance foi "Caim", de 2009, também bastante criticado pela Igreja Católica por conta de sua visão pouco ortodoxa do Velho Testamento.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Show de Dão e a Caravana Black

Show de Dão e a Caravana Black
Amanhã, 17 de junho de 2010 - 21h00
Praça Tereza Batista - Pelourinho
ENTRADA FRANCA

Economia Criativa: Moda e Design

Como acontece há quatro anos por ocasião do SPFW, uma interessante programação paralela organizada por Graça Cabral, Lídia Goldenstein e Lala Deheinzelin discutiu ontem no MAM o assunto da Economia Criativa.
O que é isso afinal? Nada muito complicado, mas muito novo e moderno: é a economia que não se produz com matérias-primas perecíveis, como petróleo, minerais, gás, mas com valores intangíveis (mas muito concretos) como marcas, design, criatividade e beleza.
Moda, é claro, tem tudo isso; é só observar o que um evento como o SPFW gera de economia para uma cidade como São Paulo: hotéis e restaurantes cheios, lojas movimentadas, showrooms trabalhando, sem falar nos jornalistas, cabeleireiros, modelos, costureiras e etc., mais diretamente envolvidos nos desfiles e nas passarelas.
Vejam o quanto de dinheiro, trabalho e musculatura o sistema econômico ganha com esse belo exemplo de Economia Criativa. É através da Economia Criativa que setores tradicionais, como o têxtil, deixam de ser tradicionais (ou melhor, atrasados), incorporando novos valores como marcas, tecnologias, design. Só assim terão condições de sobreviver e competir.
Na programação de abertura do SPFW, um debate reuniu um grupo formado pelos irmãos Campana, Waldick Jatobá e Kátia Avillez (cofundadores do Design São Paulo) e Armand Hadida (dono e comprador da L´Éclaireur uma das lojas/conceito mais respeitadas de Paris). O papo foi muito intenso e se tornou ainda mais forte quando Mr. Hadida declarou em alto e bom som que a moda do Brasil, para ter algum interesse para compradores e consumidores internacionais, teria que deixar de ser conservadora, atrasada e se jogar para valer na criação aceitando com isso correr riscos.
Incentivou as empresas a serem mais ousadas e exigirem mais de seus criadores, usarem materiais novos, empregarem a extraordinária força da produção artesanal do país, mas demandando delas (e ensinando a fazer) produtos atualizados e desejáveis e não os eternos e tradicionais modelos que não interessam ninguém. Foi duro de ouvir, mas temos que tirar dessas palavras elementos de reflexão e de ação. O homem ama o Brasil e estava, honestamente, tentando ajudar a tornar nossa economia mais criativa!

Gloria Kalil

LINK

terça-feira, 15 de junho de 2010

Publicidade - os direitos dos animais

Criatividade e consciencialização são palavras de ordem na nova campanha publicitária realizada pela agência WCRS, que assina Born Free “Keep wildlife in the Wild”. Qualquer um de nós tem consciência da quantidade de pessoas, que por falta de recursos ou alternativas, vivem nas ruas. A última campanha da Born Free, pega nesta ideia e coloca animais selvagens, sem lar, em cenários urbanos. A ideia é chocar e sensibilizar para o fato de existirem milhares de animais nestas circunstâncias, animais esses que não tiveram nem têm poder de escolha, pois alguém ou todos nós contribuímos para a destruição do seu Habitat Natural.

É importante referir, que para além do impacto visual esta campanha foca temáticas de fato importantes para a atualidade em que vivemos.

Animais sem casa e a destruição dos habitats naturais, o desenvolvimento e a construção de um número crescente de cidades e estruturas que consequentemente levam a que milhares de espécies animais percam as suas casas, o ambiente selvagem que é destruído sem quaisquer reservas, são temas que a Born Freen pretende abordar e fazer chegar a todos nós, para que a missão de proteção das espécies e conservação do seu habitat seja alcançada.

A Born Free é uma fundação que acredita acima de tudo que os animais selvagens tem direito a viver no seu ambiente natural. A destruição destes ambientes e habitats naturais deve-se a um conjunto de factores, tais como a desflorestação, as guerras, as alterações climáticas, a agricultura e o crescimento da população que provoca o aumento dos centros urbanos. Ganhamos e construímos casas, muitas vezes roubando ou retirando a casa a muitos destes animais.

Esta campanha brilhante, usa a fotografia de George Logan e as habilidades criativas da empresa de publicidade WCRS. É importante referir que todos os serviços desenvolvidos e o espaço da publicidade foram doados, de forma a aumentar a consciencialização para este problema e ajudar a Born Free nesta missão. As imagens de animais selvagens colocadas em cenários urbanos, pretendem chocar e alertar para o ritmo alarmante com que a natureza e habitat selvagens são hoje destruídos.

agência WCRS

domingo, 13 de junho de 2010

A abadessa Hildegard von Bingen

Mística, compositora, teóloga e autora de livros de medicina natural, Hildegard von Bingen é uma das personagens femininas mais interessantes da Idade Média

Num mundo medieval comandado pela insegurança, pelo clero e por senhores feudais, a abadessa alemã Hildegard von Bingen não se deixou dominar. Com muita habilidade e trabalho, Von Bingen construiu e administrou dois conventos, escreveu livros de teologia, medicina e ciências naturais, compôs canções e música sacra. Até sua morte, em 17 de setembro de 1179, sua maior batalha, no entanto, foi não se deixar calar.

Habilidades especiais

Quando Hildegard nasceu – não se pode precisar o dia em 1098 –, as primeiras cruzadas partiam para Jerusalém. Em 1095, o papa Urbano 2° conclamara a cristandade a "libertar a Terra Santa das mãos dos infiéis", o que aconteceria quatro anos mais tarde.

Com os cruzados, não somente pagãos, judeus e muçulmanos foram combatidos, mas também ensinamentos do Oriente chegaram à Europa medieval.

Hildegard provinha de família nobre da região de Alzey, no sul da Alemanha. Já aos 3 anos, a futura abadessa demonstrava habilidades visionárias. Mas foi somente aos 15 anos, como interna do convento junto ao mosteiro beneditino de Disibodenberg, que percebeu quão especial era a habilidade que possuía.

Como era de costume entre as famílias nobres medievais, meninas e meninos saíam de casa, já na idade de 7 anos, para a formação como cavaleiros e freiras. Além disso, muitas famílias preferiam ver suas filhas num convento a deixá-las nas mãos de um bruto senhor feudal.

Trívio e quadrívio

Além da leitura dos escritos sagrados, a curiosa Hildegard pôde, no convento beneditino, aprender a ler e a escrever rudimentos de latim. Ela não teve, no entanto, um aprendizado sistemático dos cânones do conhecimento medieval baseados nas sete artes liberais, divididas em trívio (gramática, retórica e dialética) e quadrívio (aritmética, geometria, música e astronomia). Isso era reservado aos membros masculinos da ordem.

Hildegard viveu vários anos como uma simples freira. Com a morte da tutora Jutta, em 1136, ela se tornou a superiora do convento. Sempre acometida de doenças, tentava esconder suas visões. Aos 42 anos, teria recebido a incumbência divina de escrevê-las. Por medo da tarefa, caiu doente. Somente após a intervenção de Volmar, seu padre-confessor, e do abade Kuno, ela começou sua obra.

Hildegard trabalhou durante cinco anos no livro Scivias (Saiba o caminho), ditando-o para Volmar, que corrigia gramaticalmente os escritos em latim. São Bernardo de Clairvaux, um dos maiores teólogos do século 12, interveio junto ao papa Eugênio 3° em prol de Hildegard. O Papa enviou uma comissão para examinar o caráter de seus escritos. Para a comissão, não havia dúvidas: eram palavras de Deus.

Novas visões

Pouco tempo depois, uma nova visão acometeu a futura abadessa. Deus lhe ordenava construir seu próprio convento, não mais sob a égide dos monges beneditinos. Estes ficaram bastante insatisfeitos com a decisão.

O apoio papal tornara a visionária a atração do mosteiro em Disibodenberg. Hildegard caiu novamente doente, conseguindo assim vencer a resistência do abade Kuno, de quem se despede em 1150.

Acompanhada pelo monge Volmar, Hildegard construiu seu convento em Rupertsberg, próximo à cidade de Bingen, onde nunca morou, mas que lhe deu o nome pelo qual é conhecida até hoje.

Hildegard demonstrou grande talento como administradora. Conseguiu o apoio do Papa e do arcebispo de Mainz na briga com os monges de Disibodenberg pelas terras, até então administradas pelos monges beneditinos, dadas pelas famílias das freiras que a acompanharam para o novo convento.

Sem proteção, nenhum convento poderia sobreviver na Idade Média. A perspicácia de Hildegard fez com que tanto o arcebispo de Mainz como seu admirador Frederico Barbarossa, eleito imperador do Sacro Império Romano Germânico, se tornassem responsáveis pela segurança de Rupertsberg.

Causa e cura

No convento, a abadessa afrouxa as regras beneditinas. A música é muito importante para Hildegard. Para receberem o sacramento da comunhão, suas freiras, com anel no dedo e vestidas de branco e de flores, entoam canções que ela mesma compunha. A ideia do casamento substitui a da morte na relação com Cristo, o que explica as procissões de freiras que antes pareciam fúnebres. Para Hildegard, a Igreja é uma mulher ao lado do Senhor.

Os trabalhos no hospital e na horta do convento levam a duas outras importantes obras da abadessa, o livro de ciências naturais Physica e o livro de medicina natural Causae et Curae, escritos entre 1151 e 1158. A obra de Hildegard sobre plantas medicinais escrita em 1158 é, até hoje, referência da medicina natural. Assim como São Bernardo de Clairvaux, Hildegard não acreditava encontrar Deus na razão.

Ela aprendeu a olhar os lírios dos campos e a ver neles a presença divina que também levaria à cura de doenças. Para ela, o homem saudável estava em sintonia com Deus. Hildegard aliou a antiga medicina dos gregos, propagada por Galeno, à fé cristã. Para ela, micro e macrocosmo interagem lado a lado em sua percepção do homem e de Deus. Para honrar a Deus, o homem teria que interagir com seu meio ambiente.

O século 12 trouxe muitas mudanças para a Idade Média, que se distanciava da ideia de um Deus absoluto. Hildegard foi aristotélica avant la lettre. Somente no século seguinte, São Tomás de Aquino, o mais sábio dos santos, resgataria teologicamente o aristotelismo na doutrina cristã.

Telúrica demais para ser santa

Por volta de 1160, novas visões divinas lhe levaram a pregar por diversas cidades alemães. Em Colônia, ela se opôs ao luxo do clero e à acídia dos cátaros. Em Trier, combateu a arrogância de clérigos e eruditos. Hildegard também se posicionou contra o fanatismo religioso da plebe. Em 1165, fundou em Eibingen um novo convento, que visitava duas vezes por semana.

Ela previu a própria morte para o dia 17 de setembro de 1179. E assim o foi. Hildegard von Bingen nunca foi canonizada pela Igreja Católica. Sua sagacidade também lhe gerou muitos inimigos. Talvez por isso seu processo de canonização foi arquivado já no século 13.

Por outro lado, como poderia ser canonizada uma mulher que ousou penetrar um terreno destinado aos homens? Como pode ser santificado alguém que sempre esteve tão próximo à terra?

Para Hildegard, Deus existia para aqueles que achavam que ele existia. Na mesma lógica, Von Bingen é santa para aqueles que acham que ela o é. O boom da medicina natural prova que, até hoje, ressoam suas idéias, pois as doenças da sociedade industrial não podem ser curadas com os remédios que ela mesmo produz.

Autor: Carlos Albuquerque

Revisão: Alexandre Schossler