Mas Saramago é sem dúvida autor de grandes romances, embora sua produção mais recente, na minha opinião, tenha perdido em qualidade o que ganhou em ritmo de publicação. Seus melhores livros, para mim, são os dos anos 80, começando por aquele que o apresentou aos leitores brasileiros, Memorial do Convento (1982), pioneiro na combinação de ficção e História que seria explorada com sucesso mais tarde por Umberto Eco e outros autores menos sérios. O protagonista desse romance é o Convento de Mafra, erigido em Portugal no início do século XVIII, em cumprimento de uma promessa feita pelo rei D. João V. Saramago introduz num painel histórico conveniente, com descrições notáveis de autor-de-fé, procissões de penitentes e casamentos de infantes da realeza, uma trama paralela, de um certo padre Bartolomeu que é ajudado, num empreendimento à margem do Santo ofício, pelo casal Baltasar e Blimunda. Nas entrelinhas o romance critica a exploração dos pobres pelos ricos e a corrupção – religiosa, no caso, mas no fundo inerente à natureza humana.
Saramago já tinha mostrado seu potencial em Levantado do chão (1980), que retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo, explorada por latifundiários e pelo clero conservador, do final do século 19 à Revolução dos Cravos. Seguem-se a Memorial do Convento três romances fundamentais, que consagram definitivamente o escritor: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986) e História do Cerco de Lisboa (1989).
Em O Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago usa o heterônimo de Pessoa para criar o testemunho fictício de acontecimentos trágicos do ano de 1936, refletindo a atmosfera sombria produzida pela afirmação e crescimento do fascismo na Europa. Já adaptado para o cinema – como o mais recente Ensaio sobre a Cegueira, que resultou no filme Blindness - A Jangada de Pedra tem como premissa fantástica o descolamento da Península Ibérica do resto da Europa – e reflete a reação do escritor ao processo de unificação da Europa, com os países ibéricos colocados para escanteio, navegando à deriva e sem se identificarem cultural, social ou economicamente com o restante do continente. Saramago volta à fusão intertextual entre fantasia e realidade em História do Cerco de Lisboa, que intercala duas histórias: a de um revisor tipográfico que muda radicalmente o passado ao introduzir a palavra “não” no texto sobre cruzados e muçulmanos e da própria tomada de Lisboa que permite a Saramago explorar o conflito entre o mundo islâmico e o mundo cristão.
Publicado originalmente em Máquina de escrever
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