Felizmente para seus admiradores no Brasil, o ritmo das exposições e do lançamento de livros de arte sobre a obra de Vik Muniz tem sido intenso nos últimos anos. Em fevereiro deste ano o documentário Lixo extraordinário, que ele protagoniza, foi premiado no Festival de Berlim, e atualmente um trabalho seu pode ser visto todas as noites na televisão: a abertura da telenovela Passione - que provocou algumas reações negativas no meio artístico. Nesta longa entrevista exclusiva, Vik comenta a situação da arte contemporânea, analisa o poder dos curadores e responde às críticas à sua aliança com a cultura de massa.
- Você lançou recentemente o catálogo Vik Muniz – Obra Completa. Um catálogo tem, por definição, uma característica de inventário, mas me parece que a sua própria obra tem um sentido de “inventariar” movimentos, artistas e obras do passado da arte. Você concorda? Como analisa isso?
VIK MUNIZ: Logo quando comecei a imaginar um trabalho com imagens, minha insegurança fez com que eu partisse das ideias mais simples possíveis. Comecei a trabalhar com a imagem ainda enquanto ideia ou memória, antes mesmo que como traço ou resíduo. Eu acredito que este rigor auto-imposto em organizar a minha pesquisa de uma forma ordenada vinha principalmente do medo de começar pelo fim e depois não ter nada mais para dizer, do medo de uma carreira curta e insignificante. A longo prazo, a função mais importante do artista é gerenciar a criatividade, para que a percepção da sua obra como um todo seja coerente para aqueles que acompanham o trabalho, sem sacrificar a naturalidade e espontaneidade do processo criativo. Este aspecto quase taxionômico do meu trabalho se deu em parte pela maneira como eu comecei a mexer com o assunto das imagens, mas também tem a ver com a maneira como eu procuro entender as coisas. Sou um pensador organizado, econômico, para não dizer preguiçoso. Tenho uma memória muito fraca e por isso sinto necessidade de organizar a informação de um modo sólido. Na verdade eu curto muito descobrir aos poucos essa engenharia do conhecimento adquirido; é algo que a principio só servia para mim, mas que, aos poucos, eu venho implementando como mais uma estratégia de trabalho.
- Você usa de maneira original diversos materiais e informações, mas ao mesmo tempo passa a ideia de um controle absoluto sobre o resultado. Num momento em que a técnica muitas vezes é posta em segundo plano, que importância você atribui ao domínio da linguagem, dos materiais e da expressão?
VIK: A técnica, o controle, já tiveram lugar mais importante no meu processo de trabalho. Depois de mais de 20 anos de carreira, eu vejo a coisa mais ou menos assim: quando o artista é jovem, ele possui uma necessidade imensa de mostrar para o mundo quem ele é, seu intelecto, sua cultura, criatividade, talento e destreza manual. O artista jovem quer mostrar ao mundo que, em meio a tantos outros artistas jovens, ele é o melhor, um candidato a um lugar de destaque na história e na memória popular. À medida que o tempo vai passando, e este artista jovem vai testando seus talentos com certo sucesso em meio a um publico especializado, ele começa a entender que mesmo um grande cérebro é sempre um grande “um”, e que o segredo da continuidade evolutiva de seu trabalho reside em uma aprendizagem fria e desapegada de como analisar a opinião publica. Para mim esse momento marca a minha maturidade intelectual; saber que estou sempre fazendo a metade do trabalho, e que o resto quem faz é o publico. Reconhecer isso requer uma certa humildade, que os jovens não possuem. A partir dai você começa escutar o mundo à sua volta, as conversas no quiosque, as crianças, seus assistentes, os colecionadores, os guardas do museu. Ao contrario de antes, o mundo passa a refletir o seu trabalho. Isso gera uma satisfação indescritível e uma responsabilidade avassaladora. É desse momento, quando qualquer pessoa pode entrar em seu estúdio e fazer algo que você faz, é dessa vulnerabilidade que eu tiro proveito para tecer conceitos mais sutis, mais independentes. Eu não consigo mais me enganar com a ideia que ninguém é capaz de fazer o que faço, mas sei ter sido o único capaz de ter feito o que fiz na mesma ordem e proporção.
- Sua obra é toda ela figurativa, mas hoje a figuração é tratada muitas vezes com reticência por curadores e críticos. Como enxerga isso?
VIK: O meu trabalho começou a ganhar forma durante os meados dos anos 80, em Nova York. Coincidentemente, ao mesmo tempo em que alguns artistas começaram a tratar o mundo da mídia como paisagem, uma forte corrente de abstração tomou conta do mercado, com artistas como Peter Schuyff, Peter Halley, Jonathan Lasker, Phillip Taaffe e Ross Bleckner. Enquanto a maioria das pessoas via um certo antagonismo nos dois discursos vigentes, eu os achava perfeitamente complementares. A nova abstração, ou Neo-Geo, se distinguia categoricamente da ultima onda de abstracionismo, por ser completamente despida de esoterismos vulgares ou ambigüidades semânticas como “valores espirituais”, entre outras utopias estéticas. Essa abstração era, de certa forma, cínica e ácida e, ao invés de apontar para um universo de espiritualidade, falava diretamente da pobreza sedativa do nosso imaginário. Eu acredito num projeto realista, no qual o ilusório caracteriza o real através de suas ferramentas e artifícios. Uma abstração capaz de revelar a programação visual do homem moderno não parece ser um projeto menos importante. Uma das coisas que aprendi durante esse período de contraste entre o figurativo e o abstrato foi dosar essas noções em quantidades idênticas quando realizo um trabalho. Uma foto de chocolate é representacional somente enquanto o espectador se esquece do chocolate, uma vez que, quando a atenção passa para o material, a imagem se dissolve em uma espécie de falsa abstração. Uma imagem de uma substância remete à mesma através de significantes artificiais, como a memória do chocolate. Visualmente, porém, aquilo não passa de uma gororoba, que pode ou não ser chocolate de verdade.
- Você se considera um artista pós-moderno, no sentido de realizar uma reciclagem de questões da História da Arte? Independente da resposta, o que significa para você o pós-modernismo? E o que pensa da tese do “fim da história da arte”?
VIK: Se todo mundo continuar querendo escrever o parágrafo final da História da arte, a gente ainda vai ter História por mais 5 mil anos. A História moderna foi criada com o objetivo de contextualizar o presente dentro de uma ordem pré-estabelecida de eventos, na qual o presente parecia mais ser uma conseqüência do futuro que do passado. A derrota das utopias e do pensamento idealista só implicam o fim de um tipo especifico de se apresentar a História. O presente intenso e multiplicado parece convergir diversos passados, sem nunca apontar para um futuro preciso. É impossível não se inspirar no caos temporal do mundo contemporâneo. Um mundo de memórias instantâneas, onde gerações diferentes escutam as mesmas playlists, curtem os mesmos filmes e leem os mesmos textos. A total disponibilidade da memória sensorial faz com que o passado seja uma parte constante do nosso presente. Nenhum projeto realista estaria completo sem dar uma atenção especial a essa confusão, a essa complexidade incrível de como o presente é continuamente permeado pelo passado no nosso dia-a-dia.
- Fale brevemente sobre como você enxerga a relação da fotografia com a arte contemporânea?
VIK: A fotografia modificou a maneira como o homem moderno passou a enxergar o mundo. Historicamente falando, se a fotografia não houvesse sido inventada, a arte de hoje seria bastante diferente. Contudo, a importância do advento da fotografia parece impactar o curso da visualidade contemporânea numa escala muito menor do que a sua recente obsolescência. Um século e meio após a invenção da fotografia – em 1992, para ser mais preciso – foi criada uma poderosa tecnologia que permitiu a popularização de técnicas de manipulação de imagens a um nível além do discernimento visual imediato. O desenvolvimento de tecnologias como Photoshop libertou a fotografia de sua condição de reflexo verossímil da experiência humana, e ela passou a se desconstruir da mesma forma como ocorreu com a pintura, após a sua invenção. Trabalhar com fotografia hoje em dia acarreta a mesma complexidade filosófica que provavelmente ocupou os pensamentos de pintores do século retrasado. O que fazer com um meio que, embora tenha se tornado obsoleto, continua sendo o alicerce que suporta a visão atual? Alguns fotógrafos partem para o atomismo, como os impressionistas e pontilhistas, outros para a abstração, para o surrealismo, o mecanicismo – e a fotografia, finalmente se descobre como veiculo, independente da sua responsabilidade com o real. Eu não imaginaria melhor época para trabalhar com uma disciplina intelectual do que durante a sua liberação da realidade. Nessa equação, eu me vejo com as mesmas preocupações que afetavam Courbet, que professava o paradoxo de um realismo pictórico em um mundo pós-fotográfico.
O critico americano Andy Grumberg, em seu ensaio seminal A Crise do Real, narrou com precisão a convergência simultânea entre fotógrafos tradicionais que começaram a se interessar por aspectos mais conceituais ou “artísticos” em sua pesquisa de trabalho e artistas que instintivamente começaram a se servir da fotografia, não somente como instrumento de pesquisa, mas como resultado final do trabalho. Segundo Grumberg, esse encontro começou a ser esboçado durante os anos 70 e culminou nos meados dos anos 80 com a chamada “Pictures Generation”. Eu, particularmente, vejo como apoteose desta convergência o aparecimento de papéis fotográficos de grande escala, o que possibilitou uma igualdade ergonômica da maneira como as pessoas observam fotografias e pinturas em casas, galerias ou museus. A geração de Ruff, Gursky e Jeff Wall, entre outros, foi responsável também por uma equiparação mercadológica do objeto fotográfico em relação à pintura e a escultura. Hoje em dia, toda galeria importante, em qualquer lugar do mundo, representa fotógrafos com o mesmo empenho e dedicação com que representa outros artistas, e eu acredito que o mercado é a influencia mais importante por trás desta tendência.
VIK: A apropriação é uma postura conceitual em relação à cópia, pois questiona a propriedade intelectual do objeto ou da imagem. No meu trabalho, eu jamais questiono a importância ou o mérito da fonte. Minha função remete o publico diretamente na direção do original. A minha preocupação não é com a autoria e sim com a evolução dos rituais visuais. Uma forma de avaliar esta evolução é trabalhando com imagens já exauridas pela reprodução excessiva. Só depois de ver uma imagem que a gente está careca de conhecer “como se fosse pela primeira vez” é que a gente se dá conta de como a nossa percepção é tão mutante quanto os avanços tecnológicos de produção e disseminação de imagens. Eu não aproprio, eu copio, e a cópia, ao contrário da apropriação, ao invés de tentar remover, cimenta o papel do original na história das imagens. Gombrich chamava o processo de reprodução acadêmica de “Schemata”, adaptando um conceito anterior do psicólogo britânico Frederic Barlett . Eu dei aula de desenho acadêmico por mais de dez anos e acredito que a “Schemata” nos ensina muito mais que o traçado e a linha dos grandes mestres. Ela aponta principalmente para a codependência de formas simbólicas no grande plano da História através da representação. Você começa a ver a razão pelas quais algumas imagens se tornam irrelevantes e outras “renascem” a partir de contextos favoráveis. A cópia é um elemento fundamental na História das imagens.
- Da fotografia do Pollock refeita com chocolate ao Lucio Fontana refeito com pigmentos, passando pelos retratos de confete, você repete o procedimento de representar/re-apresentar imagens/obras com materiais inusitados. Não teme que isso se torne repetitivo? Ou isso não importa?
VIK: A noção de “representar repetitivamente imagens conhecidas com materiais inusitados” é uma simplificação cruel e reducionista do meu trabalho. O mesmo seria simplificar a obra de Beatriz Milhazes à “persistentemente repetir padrões decorativos com tinta acrílica” ou a de Cildo Meireles como “esboçar questões sobre o sistema de valores se servindo de acumulações de objetos” Todo mundo quer reduzir o trabalho do artista a um resumo de uma linha, e quando conseguem, por subtração, omissão calculada ou por pura ignorância, acreditam ter o assunto como encerrado. Mondrian pintou quadrados quase uma vida inteira, Morandi, os mesmos potes, Ryman só telas brancas, e Flavin, só tubos fluorescentes. Hoje em dia, o pessoal está confundindo a Bienal com o Fashion Week; uma coleção nova a cada seis meses. Isso é uma cobrança fútil; o artista, ao longo da carreira, acumula estratégias e preocupações que revisita com frequência. Não existe nenhuma necessidade de se abandonar tais convicções, tanto porque, para o público cuja atenção curta requer uma sucessão ininterrupta de novidades, existe sempre a possibilidade de descobrir novos artistas. Uma das preocupações centrais do meu trabalho reside, sim, na relação entre o material e a imagem, na definição continua dessa ligação sublime entre o material e o mental. Isso tem sido uma pesquisa longa e engajada – e também completa, no sentido em que procurei esgotar em cada série todas as nuances e sutilezas que a situação propiciava. A escolha de trabalhar em séries também tem a ver com a criação de um modo de trabalho que possibilita uma evolução sutil. A cada obra de uma série é possível aplicar o conhecimento adquirido em obras seguintes. Eu não procuro realizar obras-primas ou revoluções em meu trabalho; eu vejo uma evolução discreta de pequenas ideias e conceitos que se alinham e se aprimoram. Pode parecer repetitivo dependendo da generosidade do espectador, mas cada trabalho lida com uma pequena ideia diferente.
- A ideia da representação me parece ser o grande tema do seu trabalho, impressão reforçada pelos seus textos teóricos. Sobre isso, pergunto: você no fundo não seria um artista “conservador” (no melhor sentido da palavra), ligado à tradição, mais do que um artista ligado à matriz conceitual que prevalece hoje, que substitui a representação pela designação como procedimento artístico?
VIK: Eu me vejo bastante conservador, no sentido em que sempre estou procurando um sentido evolucionário, em vez de revolucionário, no plano do desenvolvimento da relação do ser humano com a imagem. Você também tem razão em me caracterizar como tradicional; por prudência ou covardia, eu nunca procurei ser um artista diferente. Eu também não vejo uma relação anacrônica entre representação e designação, quando se trata de noções codependentes tanto no plano lingüístico como no modus operandi da produção artística contemporânea. O que quero dizer é que um artista conceitual não está proibido de se servir da representação como tema principal de seu trabalho, muito menos se limitar a determinados processos simplesmente porque os mesmos se relacionam à tradição.
- Complementando: você se considera um artista afinado com as tendências dominantes na arte contemporânea? Em que sentido?
VIK: Eu não sei se saberia dizer quais são tais tendências dominantes. Quando dirijo, olho para frente e pelos retrovisores, diretamente, nunca para os lados. Eu nunca me preocupei com tendências, movimentos ou modismos. No momento em que você começa a se preocupar com um contexto contemporâneo para o seu trabalho, você já está correndo atrás do prejuízo. A contemporaneidade quem faz é quem não está distraído com a História recente, mas focado em um presente intenso e fugaz. Sempre fui um artista de nicho. Eu me preocupo com as minhas coisas e sigo fazendo o que sempre fiz.
VIK: Embora goste muito de escrever, sempre acreditei ser completamente inapto para escrever sobre arte com autoridade. Outro dia eu comentava com a minha ex-mulher, a artista Janaina Tschape, que reclamava do fato de que, depois que voltou a pintar, a critica escrevia menos sobre seu trabalho; quando se escreve uma critica sobre um vídeo ou fotografia, a facilidade de ter um tema como ponto de partida, a possibilidade de uma descrição em vez de uma avaliação estética, facilita enormemente o trabalho do critico, ou melhor, nesse caso, do jornalista. Escrever sobre uma pintura, no melhor estilo de John Ruskin, Herbert Read ou Meyer Shapiro requer uma sensibilidade poética e um vocabulário de ferramentas descritivas tão vasto quanto os do pintor da obra. É raro ler uma descrição de uma pintura baseada em composição, contraste, cor, em vez de valor de venda. Na euforia da ultima bolha, até a critica mais reputada caiu nos charmes do surrealismo ditado pelos leiloeiros. Isso, para mim, foi o golpe de misericórdia na credibilidade da critica internacional. Não interessa o quanto ele é derivativo e repetitivo, Damian Hirst, mesmo sem um currículo institucional decente, ao se transformar em um fenômeno de mercado se tornou imune a toda e qualquer critica: é como se nunca ninguém tivesse visto uma caveira antes. A grande sacada de Hirst é exposição da supremacia desvantajosa do marketing para com a critica. O coitado do Robert Hughes quase foi assassinado por tentar expor a indigência intelectual da obra de Hirst como objeto e não como performance. É engraçado, eu ando lendo muito pouca critica; uma vez que você percebe a agenda do critico, dá até para prever o que ele vai escrever. Isso não quer dizer que algumas agendas não sejam mais amplas, ambiciosas e válidas. Por exemplo, eu não deixo de ler nada que o Peter Schjeldahl escreve. O Brasil também tem ótimos escritores, talvez mais parceiros e generosos para com o artista e menos atrelados a agendas pessoais.
- O que acha desse esvaziamento do papel do crítico de arte no Brasil e no mundo? A que atribui esse fenômeno?
VIK: Seria cruel culpar a critica pela sua atual irrelevância. É o universo da mídia que tem se transformado e com isso tem também modificado as atitudes do consumidor de mídia em geral. Hoje em dia, a navegação é o próprio conteúdo; é a colagem das escolhas e narrativas pessoais que vai ditar a relação, baseada em independência intelectual, que o individuo mantém com o mundo. Embora a adesão a canais específicos de informação ainda seja um comportamento revigorante, a disponibilidade de canais é tamanha, que a importância dos mesmos é diluída. Com o advento da internet, todo mundo se tornou um critico, um curador e um editor. A participação do individuo na textura cultural da sociedade criou uma espécie de fragmentação, na qual conceitos e discursos perderam a sua definição, são como nuvens. O que antes era um manifesto hoje em dia é uma tendência, e o critico funciona na posição fatalista de um meteorologista cultural. Ele é capaz de dizer se está chovendo e onde, mas perdeu a sua capacidade de fazer chover. No Brasil, o consumo e envolvimento público com a arte contemporânea é ainda um conceito em formação, é algo vivo e muito interessante como laboratório. Ao contrário da Europa ou dos Estados Unidos, a mídia de massa dedica espaços generosos à arte contemporânea, mas o público em geral apresenta uma certa carência de informação especializada para realizar escolhas de programas culturais: ainda existe a demanda de uma orientação especializada. O papel do crítico nesse estágio de desenvolvimento cultural é muito importante e deve ser executado com ambição, visando à formação de uma relação de dinamismo e engajamento do público com a paisagem cultural, e não simplesmente cultivar a opinião pública em benefício de uma agenda particular.
- Waltercio Caldas já usou a expressão “Curadorismo” para se referir ao crescente poder dos curadores no sistema da arte. Como você vê isso?
VIK: O Waltercio tem razão, Mas o fato não é tão preocupante, porque hoje em dia tem mais curador do que DJ. No futuro cada artista vai ter o seu., como um tradutor; o artista balbucia uns grunhidos grotescos e babados por de trás de uma focinheira à la Aníbal Lecter, e o almofadinha de preto com gola rolê ao lado traduz tudo em um jargão pedante e cheio de footnotes, mais ininteligível do que o grunhido babado. Essa é a mais perfeita parceria entre o estereótipo da razão e o da sensualidade. Eu acho isso muito divertido. O mais engraçado ainda é que eu também sou curador. Outro dia eu bebi relativamente em demasia e me engajei numa briga ferrenha com um camarada que tentava me convencer de que artista não entende nada de arte. Só quando eu falei para ele que eu havia sido curador de exposições no Metropolitan, no MoMA e no Musée d’Orsay, ele começou a respeitar o que eu estava dizendo e até me pediu desculpas. Era como se eu tivesse mostrado a ele que, em vez de bandido, eu era delegado da policia. O pintor americano Ross Bleckner disse alguns anos atrás uma frase que ficou na minha cabeça: “Van Gogh fucked the rest of us.” A ideia de um artista “além do seu tempo”, marginal, mal ajustado e incompreensível, de uma certa maneira prevalece na imaginação pública, criando um espaço para a atividade parasítica de alguns desses “profissionais”. A simples ideia da necessidade de um intermediário entre qualquer artista e seu público me parece sinistra e predatória, porém muito da culpa do atual poder do “curadorismo” vem do próprio artista contemporâneo, que, ignorando, desconhecendo e alienando seu público, prefere se esconder atrás da artificialidade segregadora que certos curadores propiciam. Eu não posso conter essa impressão que tenho de que a função desse tipo de curador é de elevar a posição do artista por meio do detrimento da sua relação com o público. Eu às vezes saio de exposições sem um maior conhecimento da obra de fulano, porém absolutamente convencido da minha incapacidade de compreendê-la. A função do curador hoje em dia seria garimpar a complexidade holográfica do mundo da informação, à procura de direções e convergências, ou re-organizar a informação acumulada ao longo da História de acordo com a sensibilidade e percepção contemporânea. Eu, particularmente, curto muito os projetos de grande escala, cujo tema é abordado de uma forma multidisciplinar e atemporal, como os blockbusters de Jean-Hubert Martin ou Jean Clair.
VIK: Os movimentos de vanguarda colocavam em xeque um tipo diferente de instituição das que temos hoje em dia. Não havia um mercado de arte internacional, não havia a mesma mobilidade, a mesma distribuição de informação. A resistência se dava a um nível mais íntimo, local, onde essa argumentação era baseada em um número limitado de vetores. Artistas alemães debatiam instituições alemãs, dentro do contexto político e cultural daquele país. O mesmo faziam os franceses, os italianos, os russos e assim por diante. A cultura de consumo, sendo o órgão motor da sobrevivência do homem pós-moderno, infiltrou as bases do pensamento contemporâneo em todos os setores de atividade cultural, suprimindo utopias e idealismos. O foco da cultura atual trata da fabricação e satisfação de desejos artificiais, e isso inclui o desejo nostálgico do engajamento artístico no plano político.
Por outro lado, uma das características mais lamentáveis do modernismo era de confundir definição com conceito. Muitos artistas estavam tão ocupados em estabelecer o que era a arte moderna que mal tinham tempo para fazê-la. Hoje em dia essa preocupação não existe ou, se existe, existe de uma outra forma. Não são mais definições ou conclusões que movimentam o processo artístico, e sim dúvidas e insatisfações. Hoje em dia, as instituições parecem mais refletir as preocupações e ambições do artista do que representar um pólo de resistência ao desenvolvimento criativo.
- Você é o artista brasileiro contemporâneo mais valorizado no mercado internacional. O sucesso gera algum tipo de pressão ou angústia? Fale sobre isso. De que maneira lida com isso e como você analisa as regras do mercado da arte hoje?
VIK: O mercado de arte é como um jogo. E, como em todo jogo, o jogador é recompensado pela sua produção e pela sua criatividade dentro de uma série de regras pré-estabelecidas. Só que chega uma hora em que ele não se contenta mais em disputar seu lugar na História com os demais jogadores e começa a tentar mudar as regras do jogo. Aí é que o jogo começa de verdade. Grandes artistas são aqueles que geraram revoluções sistêmicas na maneira não só como o mundo é visto pela arte, mas também como a arte pode ser vista pelo mundo. A pressão só existe enquanto você está submetido às regras. Uma vez que você descobre alternativas de atuação relevantes fora do sistema, você começa a relaxar e ver a profissão do artista de outra forma.
Em relação ao sucesso, tudo isso é muito relativo. Outro dia, a moça que vende pizza no Supermercado Zona Sul se debruçou no balcão após me entregar uma margarita gourmet, para me dizer baixinho: “Eu adoro o seu trabalho!” Isso para mim é sucesso. De resto, eu acredito que, com o passar do tempo, você adquire uma certa reputação, e embora tudo fique mais fácil, nunca tem aquele gostinho que tinha quando eu era jovem e bem mais inseguro. A vida profissional do artista é muito parecida com a sua vida real, a diferença é que, na vida profissional, a melhor parte é a adolescência.
Eu sou uma pessoa ilusoriamente previsível e descomplicada. Nunca li romances russos e por isso nunca tive que fazer análise. Eu acho graça ao ver a minha foto na coluna social, porque sempre me sinto um penetra. A única pressão que tenho é a de produzir obras para exposições – o que é a coisa que eu mais sei fazer e que me dá o maior prazer. Quem me conhece pessoalmente sabe que eu nunca reclamo de nada. Existem tantos problemas… Mas também tantas soluções…
- Já ouvi versões diferentes do seu início, de sua ida para os Estados Unidos etc. Você realmente levou um tiro ao apartar uma briga? E ganhou uma passagem para a América de presente, como forma de compensação? Ou isso é, em alguma medida, lenda?
VIK: A história é verdadeira. A multiplicidade de versões vem da inabilidade dos repórteres de escrever na velocidade em que falo. De qualquer forma, eu não me incomodo com o que a imprensa fala de mim, contanto que tudo continue a ser mentira. Falando em mentira, o incidente real aconteceu assim:
Eu estava em um evento social em São Paulo e, ao sair do evento, uma garota entrou na frente do meu carro e pediu desesperadamente para que eu apartasse uma briga em que um cara, munido de um soco inglês, agredia violentamente o seu namorado. Saí do carro, apartei a briga, o agressor saiu correndo, e o agredido, desconcertado e ferido, sacou uma arma do interior de seu carro, e descarregou-a em mim por engano. Um tiro somente atingiu minha perna, graças à falta de mira do atirador. Quando acordei no hospital, a primeira coisa que vi foi a cara enfaixada do meu agressor, que decentemente me pediu desculpas e se propôs a pagar as despesas hospitalares, além de me indenizar pelo acidente. Foi com parte desse dinheiro que eu consegui comprar uma passagem para os Estados Unidos.
- Para concluir: você criou a abertura da telenovela “Passione”. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, já existem reality shows de artistas plásticos. Fale sobre essa aproximação das artes plásticas com a TV e a cultura de massa: o que ela diz sobre a arte contemporânea?
VIK: A TV e a cultura de massa até agora só banalizaram a arte contemporânea. A vida de artistas ingleses e americanos é quase tão tediosa quanto a dos vigias noturnos. Você vai ver, ainda vão fazer um reality show sobre vigias noturnos. Fazer uma abertura de novela não tem nada a ver com a minha vida de artista. Eu iria preferir assistir A um campeonato de golfe numa televisão em branco e preto do que ver uma novela sobre a minha vida.
O mundo da arte é muito chato, mas o artista ainda tem a capacidade de mudar o mundo para que ele não seja tão chato quanto a sua vida pessoal. Levar o artista para a televisão é uma imbecilidade pior do que um show sobre mecânicos de motocicletas. Levar arte ao grande público é uma história completamente diferente, especialmente quando surge uma oportunidade única de apresentar o seu trabalho para um público diário de cerca de 50 milhões de pessoas, por dez meses. Isso é um Super Bowl a cada dois dias. A telenovela, além de representar uma grande característica da nossa cultura recente, e de ser também uma das únicas formas de mídia de massa interativa, tem um poder de distribuição que ainda não está na alçada das mídias de ponta, como a internet. É um fenômeno exclusivo da nossa cultura e único em sua dimensão. É incrível poder testar o meu trabalho através de uma estrutura tão poderosa. E eu achei muito interessante o fato de uma emissora de televisão chamar um artista plástico para fazer uma abertura de novela. Se eu, por algum orgulho besta, houvesse recusado, talvez a oferta não se repetisse para outros artistas. Ficou muito bom, e a experiência foi vantajosa para todos os participantes. Eu espero que eles continuem chamando artistas plásticos para fazerem suas aberturas.
Eu não vou negar uma certa tristeza para com a atitude provinciana de algumas pessoas, que não enxergam a importância da mesma arte que decora suas casas e os seus museus na vida de pessoas sem acesso a ela. Um curador me chamou de vendido, sem saber que tanto neste projeto quanto em qualquer outro de cunho comercial, eu dôo toda a minha parte para empreendimentos sociais que envolvem jovens e arte. Outro individuo disse que artistas de verdade nunca iam se submeter a tamanha humilhação. Warhol apareceu no “Love Boat” duas vezes, Jasper Johns e Frank Gehry nos Simpsons. E o pior, que artista de verdade não faz trabalho de encomenda. Artista de verdade não, mas Michelangelo, Velásquez, Ticiano, Rubens, Tiepolo e Picasso faziam. A grande crise de relevância que a arte contemporânea atravessa hoje em dia não é por falta de público, cultura ou interesse; é pelo preconceito conservador e paranóico de pessoas que vêem a cultura como um privilégio, e não como um direito.
LIVROS SOBRE VIK MUNIZ E SUA OBRA:
- Vik Muniz – Obra completa. Org. de Pedro Correa do Lago. Capivara, 798 pgs. R$ 112;
- VIK. Org. de Leonel Kaz e Nigge Loddi. Aprazível, 144 pgs. R$ 90;
- Reflex – Vik Muniz de A a Z de Vik Muniz. Cosac e Naify, 204 pgs. R$ 85
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