Mística, compositora, teóloga e autora de livros de medicina natural, Hildegard von Bingen é uma das personagens femininas mais interessantes da Idade Média
Num mundo medieval comandado pela insegurança, pelo clero e por senhores feudais, a abadessa alemã Hildegard von Bingen não se deixou dominar. Com muita habilidade e trabalho, Von Bingen construiu e administrou dois conventos, escreveu livros de teologia, medicina e ciências naturais, compôs canções e música sacra. Até sua morte, em 17 de setembro de 1179, sua maior batalha, no entanto, foi não se deixar calar.
Habilidades especiais
Quando Hildegard nasceu – não se pode precisar o dia em 1098 –, as primeiras cruzadas partiam para Jerusalém. Em 1095, o papa Urbano 2° conclamara a cristandade a "libertar a Terra Santa das mãos dos infiéis", o que aconteceria quatro anos mais tarde.
Com os cruzados, não somente pagãos, judeus e muçulmanos foram combatidos, mas também ensinamentos do Oriente chegaram à Europa medieval.
Hildegard provinha de família nobre da região de Alzey, no sul da Alemanha. Já aos 3 anos, a futura abadessa demonstrava habilidades visionárias. Mas foi somente aos 15 anos, como interna do convento junto ao mosteiro beneditino de Disibodenberg, que percebeu quão especial era a habilidade que possuía.
Como era de costume entre as famílias nobres medievais, meninas e meninos saíam de casa, já na idade de 7 anos, para a formação como cavaleiros e freiras. Além disso, muitas famílias preferiam ver suas filhas num convento a deixá-las nas mãos de um bruto senhor feudal.
Trívio e quadrívio
Além da leitura dos escritos sagrados, a curiosa Hildegard pôde, no convento beneditino, aprender a ler e a escrever rudimentos de latim. Ela não teve, no entanto, um aprendizado sistemático dos cânones do conhecimento medieval baseados nas sete artes liberais, divididas em trívio (gramática, retórica e dialética) e quadrívio (aritmética, geometria, música e astronomia). Isso era reservado aos membros masculinos da ordem.
Hildegard viveu vários anos como uma simples freira. Com a morte da tutora Jutta, em 1136, ela se tornou a superiora do convento. Sempre acometida de doenças, tentava esconder suas visões. Aos 42 anos, teria recebido a incumbência divina de escrevê-las. Por medo da tarefa, caiu doente. Somente após a intervenção de Volmar, seu padre-confessor, e do abade Kuno, ela começou sua obra.
Hildegard trabalhou durante cinco anos no livro Scivias (Saiba o caminho), ditando-o para Volmar, que corrigia gramaticalmente os escritos em latim. São Bernardo de Clairvaux, um dos maiores teólogos do século 12, interveio junto ao papa Eugênio 3° em prol de Hildegard. O Papa enviou uma comissão para examinar o caráter de seus escritos. Para a comissão, não havia dúvidas: eram palavras de Deus.
Novas visões
Pouco tempo depois, uma nova visão acometeu a futura abadessa. Deus lhe ordenava construir seu próprio convento, não mais sob a égide dos monges beneditinos. Estes ficaram bastante insatisfeitos com a decisão.
O apoio papal tornara a visionária a atração do mosteiro em Disibodenberg. Hildegard caiu novamente doente, conseguindo assim vencer a resistência do abade Kuno, de quem se despede em 1150.
Acompanhada pelo monge Volmar, Hildegard construiu seu convento em Rupertsberg, próximo à cidade de Bingen, onde nunca morou, mas que lhe deu o nome pelo qual é conhecida até hoje.
Hildegard demonstrou grande talento como administradora. Conseguiu o apoio do Papa e do arcebispo de Mainz na briga com os monges de Disibodenberg pelas terras, até então administradas pelos monges beneditinos, dadas pelas famílias das freiras que a acompanharam para o novo convento.
Sem proteção, nenhum convento poderia sobreviver na Idade Média. A perspicácia de Hildegard fez com que tanto o arcebispo de Mainz como seu admirador Frederico Barbarossa, eleito imperador do Sacro Império Romano Germânico, se tornassem responsáveis pela segurança de Rupertsberg.
Causa e cura
No convento, a abadessa afrouxa as regras beneditinas. A música é muito importante para Hildegard. Para receberem o sacramento da comunhão, suas freiras, com anel no dedo e vestidas de branco e de flores, entoam canções que ela mesma compunha. A ideia do casamento substitui a da morte na relação com Cristo, o que explica as procissões de freiras que antes pareciam fúnebres. Para Hildegard, a Igreja é uma mulher ao lado do Senhor.
Os trabalhos no hospital e na horta do convento levam a duas outras importantes obras da abadessa, o livro de ciências naturais Physica e o livro de medicina natural Causae et Curae, escritos entre 1151 e 1158. A obra de Hildegard sobre plantas medicinais escrita em 1158 é, até hoje, referência da medicina natural. Assim como São Bernardo de Clairvaux, Hildegard não acreditava encontrar Deus na razão.
Ela aprendeu a olhar os lírios dos campos e a ver neles a presença divina que também levaria à cura de doenças. Para ela, o homem saudável estava em sintonia com Deus. Hildegard aliou a antiga medicina dos gregos, propagada por Galeno, à fé cristã. Para ela, micro e macrocosmo interagem lado a lado em sua percepção do homem e de Deus. Para honrar a Deus, o homem teria que interagir com seu meio ambiente.
O século 12 trouxe muitas mudanças para a Idade Média, que se distanciava da ideia de um Deus absoluto. Hildegard foi aristotélica avant la lettre. Somente no século seguinte, São Tomás de Aquino, o mais sábio dos santos, resgataria teologicamente o aristotelismo na doutrina cristã.
Telúrica demais para ser santa
Por volta de 1160, novas visões divinas lhe levaram a pregar por diversas cidades alemães. Em Colônia, ela se opôs ao luxo do clero e à acídia dos cátaros. Em Trier, combateu a arrogância de clérigos e eruditos. Hildegard também se posicionou contra o fanatismo religioso da plebe. Em 1165, fundou em Eibingen um novo convento, que visitava duas vezes por semana.
Ela previu a própria morte para o dia 17 de setembro de 1179. E assim o foi. Hildegard von Bingen nunca foi canonizada pela Igreja Católica. Sua sagacidade também lhe gerou muitos inimigos. Talvez por isso seu processo de canonização foi arquivado já no século 13.
Por outro lado, como poderia ser canonizada uma mulher que ousou penetrar um terreno destinado aos homens? Como pode ser santificado alguém que sempre esteve tão próximo à terra?
Para Hildegard, Deus existia para aqueles que achavam que ele existia. Na mesma lógica, Von Bingen é santa para aqueles que acham que ela o é. O boom da medicina natural prova que, até hoje, ressoam suas idéias, pois as doenças da sociedade industrial não podem ser curadas com os remédios que ela mesmo produz.
Revisão: Alexandre Schossler
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