segunda-feira, 22 de março de 2010

A retórica na prática é outra

foto: Takashy
Leonardo Brant
Remixamos a famosa frase de Benedito Valadares para introduzir o debate a um dos mais importantes movimentos governamentais em relação ao financiamento à cultura no Brasil. Estamos falando do Procultura, o Projeto de Lei 6722/2010 enviado recentemente ao Congresso. Entrevistamos o ex-secretário de Gilberto Gil nas pastas do fomento e articulação institucional, Marco Antonio Acco, que deixou o MinC em meados de 2008.

“Devemos considerar a legislação de financiamento das atividades culturais como uma das legislações mais importantes para a construção da cidadania e da democracia em nosso país, uma legislação que, como tal, deveria ser tratada com muito zelo, sem segredos, sem reservas de informações, sem salas fechadas, uma legislação sobre a qual jovens e adultos, no morro, no asfalto, nas florestas, na beira de rios e praias ou onde quer que estejam pudessem compreender e opinar sobre ela; afinal, é uma legislação de seu mais elevado interesse individual e coletivo”, declara o consultor em gestão pública.

Acco ressalta os pontos positivos do processo. Aponta também problemas, sugerindo encaminhamentos e propostas concretas para estimular o debate e contemplar a inteligência coletiva existente na sociedade, o que contribuiria “para dirimir uma das principais dúvidas que pairam sobre qualquer proposta de reforma ou mudança de legislação que é exatamente verificar se retórica discursiva e as intenções das mudanças estão efetivamente traduzidas nas medidas enunciadas.”, aponta o economista e doutor em ciências sociais.

E mais: “o Procultura apresenta um grau de discricionariedade que, embora relevante sob certos aspectos, pode ser constantemente questionado pelos produtores culturais e seus advogados. Houve melhora em relação à minuta inicial, mas ainda resta um largo espaço para a contestação jurídico-judicial das decisões da CNIC/MinC, algo que precisa ser devidamente considerado pelas partes envolvidas.”

Acompanhe a íntegra desta primeira parte da entrevista com Marco Acco:

Leonardo BrantO que você pensa sobre o processo de discussão, construção e difusão do PL com a sociedade, da consulta pública e dos elementos de participação? O diálogo foi efetivo ou houve manipulação?

Marco Acco – Caro Léo, antes de começarmos nossa conversa, é preciso esclarecer que a principal razão que me motiva a responder suas questões é a possibilidade de oferecer algumas contribuições ao debate sobre a reforma na ou a mudança da Lei Rouanet, num sentido mais estrito, e sobre a constituição de novas e mais sólidas bases para o financiamento das atividades culturais no Brasil, num sentido mais amplo. Tenho a convicção de que é preciso que mantenhamos o debate aberto, ativo, que contribua com o avanço do conhecimento sobre o tema e a qualificação da tomada de decisões sobre a matéria, que entra agora num novo estágio com o envio do projeto de lei ao Congresso.

Assumo o risco de não conseguir me expressar com clareza ao longo de nossa conversa, e também o risco de ser mal interpretado. Não há muito o que fazer quanto a isso. Mas que não esperem encontrar aqui uma entrevista no formato sensacionalista de um “ex” rancoroso, no caso, de um ex-Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura e de ex-Secretário de Articulação Institucional na gestão Gilberto Gil, cuja fala possa ser interpretada como uma crítica histérica da política cultural desenvolvida nos dois governos do Presidente Lula. Primeiro, que não se trata disso: continuo acreditando no acerto de grande parte das iniciativas empreendidas no campo cultural ao longo desses anos de governos Lula, que em minha avaliação continuam apresentando um balanço bastante positivo, apesar de importantes dificuldades e incompletudes. Segundo, porque estarei mais centrado na atuação do Ministério da Cultura num tema mais específico, e não preocupado em fazer um balanço “em geral” (insisto, ainda bastante positivo).

E se me ocupo em tratar da atuação do MinC nesta matéria, isso decorre da centralidade institucional que o sistema político brasileiro atribui aos órgãos do Poder Executivo na condução de assuntos fiscais. Lembro que a constituição brasileira confere ao Executivo a exclusividade na proposição de legislações com impacto fiscal. Portanto, a centralidade do MinC ao longo desse processo, na condução dos debates em torno da reforma/mudança da Lei Rouanet, na produção e apresentação dos documentos oficiais (a minuta disponibilizada para consulta pública e o PL encaminhado ao Congresso recentemente), uma participação decisiva que irá se estender também na participação do MinC nas negociações e nos vindouros debates nas Comissões do Congresso, até a possível colocação do PL em votação e ainda na fase de sua regulamentação, no caso de uma nova legislação ser aprovada.

Entre o diálogo efetivo (o melhor dos mundos) e a manipulação (um dos piores, já que configura um simulacro de debate) há um mundo possível. Da minha parte, buscarei nesta conversa tomar partido dos interesses do mundo da cultura, naquilo que consigo identificar como tal, buscando apontar pontos que me pareçam importantes para serem reconsiderados e aperfeiçoados pelos setores interessados.

Feitas essas ponderações iniciais, é importante que tenhamos sempre em mente que ao falarmos de uma legislação de financiamento federal das atividades culturais de um país com as características do Brasil na virada para o século XXI, estamos tratando de uma legislação que lida com um ambiente altamente complexo, com inúmeras variáveis envolvidas, diversos interesses, dos mais frágeis aos mais robustos, com medidas que podem ter impactos variados – e alguns não pretendidos ou antecipados, e mesmo contrários às intenções iniciais. Portanto, estamos tratando de uma legislação com inúmeras sutilezas, que guarda espaços para erros, omissões e efeitos indesejados e que, diante disso, os setores envolvidos devem se esforçar ao máximo para fazer o seu melhor. Ao lado disso, estamos tratando nesta legislação da tradução dos diversos processos e atividades culturais para a linguagem da administração pública, o que, convenhamos, nunca será uma tradução perfeita, porque simplesmente não há como esperar que possamos traduzir adequadamente processos que são eminentemente livres e libertários em regras e procedimentos administrativo-burocráticos. Mais uma razão para o debate qualificado.

Além disso, devemos considerar a legislação de financiamento das atividades culturais como uma das legislações mais importantes para a construção da cidadania e da democracia em nosso país, uma legislação que, como tal, deveria ser tratada com muito zelo, sem segredos, sem reservas de informações, sem salas fechadas, uma legislação sobre a qual jovens e adultos, no morro, no asfalto, nas florestas, na beira de rios e praias ou onde quer que estejam pudessem compreender e opinar sobre ela; afinal, é uma legislação de seu mais elevado interesse individual e coletivo.

Tendo-se em mente esta relevância e ao mesmo tempo as dificuldades e desafios aí envolvidos, tenho dúvidas se o processo de debate ocorreu de forma efetiva. Na verdade, avalio que foram cometidos alguns equívocos ao longo desse processo. Um primeiro, foi o MinC ter conduzido o debate com o público a partir de uma minuta de texto legal, circunscrevendo e pautando as conversas para um texto jurídico já formatado, de domínio bastante restrito, acessável apenas ou primordialmente por “especialistas” e “entendidos” em leis e em suas minúcias. O texto legal é um dos produtos finais deste processo, e não, necessariamente, o seu ponto de partida.

Do meu ponto de vista – e me reservo o direito de estar equivocado – entendo que teria sido melhor se o documento de referência para o debate fosse um documento muito mais simples, direto, facilmente compreensível por todos os interessados, um documento composto por duas partes: uma “exposição de motivos”, e uma segunda parte mais “prática”. Comecemos por esta última. Esta segunda parte poderia ter sido organizado com base em três colunas “lógicas” de informações: na primeira coluna, seriam apresentados problemas e diagnóstico consistente dos problemas a serem enfrentados. Por exemplo: concentração regional dos recursos incentivados; baixa participação dos incentivadores pessoa física, concentração da captação em tipos e em número restrito de proponentes, concentração em linguagens e modalidades de projetos etc. com os respectivos números, proporções e, sempre que possível, evolução histórica.

Na coluna seguinte, seriam indicados quais os objetivos que se pretende alcançar para cada um dos problemas diagnosticados, calibrando-se ao longo do processo a ambição dos objetivos. Por exemplo, há razoável diferença entre “erradicar” e “mitigar”, ou “erradicar nos próximos 5 ou 10 anos” etc. Objetivos assim construídos nos dariam um entendimento melhor inclusive sobre as regras de transição de um modelo para o outro, aspecto quase que completamente ausente no PL enviado ao Congresso.

Na terceira coluna, poderíamos ter a apresentação das alternativas para o enfrentamento de cada um dos problemas diagnosticados, compatíveis com os objetivos propostos. Lembro que o leque de alternativas apontadas poderia prever alterações na lei, assim como medidas infra-legais (alterações nos documentos que regulamentam a lei e seus usos), além de medidas de “outra natureza”, como, por exemplo, programa consistente de capacitação para proponentes e gestores culturais em regiões com poucos projetos; medidas para facilitar/institucionalizar a articulação com investidores, produção e disponibilização de sites e materiais informativos e et cetera.

Um ponto de partida como este, muito mais simples e direto – e menos hermeticamente circunscrito ao universo de advogados e juristas – possibilitaria que os cidadãos contribuíssem efetivamente tanto na composição e no aperfeiçoamento do diagnóstico dos problemas, na definição dos objetivos a serem alcançados, quanto na composição/qualificação das alternativas a serem construídas. Ou seja, seria um instrumento mais adequado para absorver a inteligência coletiva sobre o tema. Daria para ver as iniciativas em construção. Ajudaria ainda ao oferecer uma ferramenta útil para acompanhar se as alternativas propostas foram efetivamente incorporadas ao texto da lei, contribuindo para dirimir uma das principais dúvidas que pairam sobre qualquer proposta de reforma ou mudança de legislação, que é exatamente verificar se retórica discursiva e as intenções das mudanças estão efetivamente traduzidas nas medidas enunciadas. Na ausência de um instrumento político como este, continuamos sem saber claramente se o que o PL apresenta é efetivamente compatível com a retórica apresentada.

Além disso, seria recomendável que este documento expressasse com clareza, na parte inicial, em sua “exposição de motivos”, os principais fundamentos e diretrizes que norteariam a mudança desejada, sempre que possível justificando as razões dessas diretrizes. Por exemplo, gostaria de compreender melhor as razões e os fundamentos para a definição de programações orçamentárias especiais, os (não tão corretamente chamados) fundos setoriais. Ponto nevrálgico da mudança em curso, seria interessante compreender, por exemplo, porque são estes fundos, e não outros. Veja, num rápido exercício, que está longe de ser exaustivo, poderíamos conceber um Fundo para Infraestrutura Cultural nas cidades brasileiras, uma das maiores se não a maior demanda que recai sobre o FNC, e que continua sem fundamentação orçamentária adequada; um fundo para capacitação, formação e pesquisa nas mais diversas áreas; um fundo grandão para atividades culturais e formação de público nas escolas, ou mesmo, um fundo para o artesanato, outro para o circo, para as artes nas ruas, para as cidades com menos de vinte mil habitantes, um fundo de compensação para o Vale Cultura (para compensar a participação de empresas médias e pequenas que não recolhem IR como Lucro Real, e que estão sem estímulos fiscais para oferecerem o Vale Cultura aos seus trabalhadores), e por aí afora.

Nesta exposição de motivos deveria estar exposto também as razões para a proporção dos recursos estabelecidos na lei para cada um dos fundos setoriais (mínimo de 10% e máximo de 30%). Se entendi bem a matemática proposta, considerando que o SNC deverá receber um mínimo de 30 do FNC, e se são 9 fundos setoriais e 8 deles devem receber entre 10 e 30% (o Fundo do Audiovisual fica de fora desta partilha), então, pode-se concluir que cada um dos fundos setoriais estaria congelado, por Lei, com 10% do FNC (8×10=80%), enquanto que o SNC estaria congelado nos 30%. Mas, se todos receberem no valor do piso, isso já daria 110%. É isso mesmo? Entendi alguma coisa errada na leitura do PL? Mas, além disso, esta proporção é resultado de alguma série histórica? De pesquisas sobre tamanhos, oportunidades, carências e/ou demandas dos respectivos setores? Ou uma forma de aliviar as disputas políticas, ou uma simples armadilha matemática – ao que parece mal equacionada? Também seria razoável expor porque alguns dos fundos tem base (ou ao menos perspectiva de base) fiscal e outros não, e porque o PL não foi (ou se será) acompanhado dos outros instrumentos jurídicos que garantiriam as bases fiscais para o FNC e para os fundos setoriais (a criação do Fundo Setorial do Livro e Leitura, por exemplo, em longa negociação dentro do governo e apoiado pelo setor).

Além disso, embora reconheça a importância de pensarmos em termos setoriais – já que há muitas diferenças entre os setores –, penso que teria sido importante considerarmos também as transversalidades, as “miscigenações”, os hibridismos de linguagens, setores e tradições. Um fundo “setorial” para lidar com a diversidade ou com as questões transversais é uma opção, para a qual gostaria de conhecer os fundamentos e os alcances. Só para apresentar um problema concreto: é para aí, por exemplo, que vão todos os projetos de “artes integradas”? Se tomarmos as estatísticas da Lei Rouanet como um indicador (ainda que insatisfatório) da dinâmica cultural em nosso país, observaremos que os projetos de “artes integradas” vem ocupando, em termos de captação, a terceira ou quarta posição entre os sete “setores” catalogados, atrás de música, artes cênicas e patrimônio (em 2007 e 2008 os projetos de artes integradas ultrapassaram a captação de patrimônio). Além disso, há outras questões transversais bastante relevantes, algumas já mencionadas, como as interações profundas entre diversidade e criação, ou entre arte, cultura e educação que poderiam ter um tratamento mais adequado.

Também seria importantíssimo expor se o FNC englobaria todas as aplicações finalísticas dos setores, ou se ficariam orçamentos finalísticos fora do FNC. Ou seja, o FNC será utilizado para financiar as iniciativas/programas do MinC ou será utilizado exclusivamente para atender as “demandas das sociedade”, canalizadas agora nos fundos setoriais? Pelo que pude entender, parece que o FNC será destinado principalmente para atender às “demandas espontâneas da sociedade”, o que é algo muito importante. Mas seria oportuno esclarecer um pouco mais qual a relação entre as políticas, programas e ações do MinC com o FNC.

A lista de grandes temas a compor esta “exposição de motivos” poderia comportar outros fundamentos como o papel do investidores empresariais, das famílias, as responsabilidades do SNC, a fundamentação das alíquotas diferenciadas de incentivo fiscal, dentre outras. Ao não termos tido um documento de referência como este, que explicitasse a “Política da política”, ficamos navegando sem algumas coordenadas importantes, o que, em minha opinião, contribuiu para ampliar os espaços para reverberações e desentendimentos.

Um outro problema ao longo do processo está associado à relativamente baixa incorporação dos fóruns de debate tais como as câmaras setoriais, os fóruns dos investidores privados em cultura (que poderiam ter sido alavancados também nos estados), o comitê de patrocínio das empresas estatais, o fórum dos secretários estaduais e municipais de cultura, a própria CNIC e o CNPC e outras instâncias como, por exemplo, um fórum permanente para debater com produtores culturais, com os institutos e fundações culturais, e com os artistas, que poderiam ter sido mais ativa e publicamente mobilizados neste debate. É claro que sempre se poderá argumentar, com alguma razão, que operamos no mundo da política real, e não no mundo das condições ideais.

Contudo, temos que ter sempre em mente o quanto esta legislação é importante e o quanto o campo cultural é complexo e diverso, que há setores altamente organizados e há os altamente dispersos e com baixa organização e baixa capacidade de representação de seus interesses. E o quanto esta multiplicidade impacta na configuração de uma legislação como esta. Lembro, como exemplo marcante, que o artesanato é um dos maiores setores culturais no Brasil e, ao mesmo tempo, um dos mais dispersos no território e com menor capacidade de organização formal e de representação política, aspectos que ajudam a compreender porque este setor ficou sem o “seu” fundo setorial. Algo similar poderia ser dito sobre a questão das relações entre cultura e educação, ultra dispersa e sem representantes formais, algo inversamente proporcional à importância do tema para o país. Por outro lado, vemos que o setor audiovisual conquistou um novo fundo setorial, aspecto bastante expressivo dessas diferenças na capacidade de influenciar a mudança da lei. Um texto legal, como tal, apresentou seletividades; há, no caso, os que ficam de dentro e os que ficam de fora. Talvez tenham ficado de fora alguns dos “setores” ou “fundos” mais relevantes, simplesmente por falta de advocacy ou baixa capacidade de formulação associadas à falhas no processo de debate.

Enfim, tenho a impressão de que o debate poderia ter sido mais denso, especialmente para uma legislação tão importante e tão complexa quanto esta. Mas, é claro, sempre me reservo o direito de estar enganado.

LBO que representa o Procultura do ponto de vista político? Quem ganha, quem perde, quem será contemplado, quem será deixado de lado, quais as forças em jogo?

MA – Do que pude perceber, alguns setores ganham e outros perdem, ou não são incorporados. Antes de ensaiar uma resposta sobre esta dificílima questão, permita que apresente mais um tema em meu entender fundamental. Estamos tratando de uma legislação que lida essencialmente com as condições de financiamento das atividades culturais no Brasil, na virada para o século XXI. Ufa, que amplitude e quanta responsabilidade! Em termos sintéticos, há cinco ou seis fontes de recursos que financiam as atividades culturais e artísticas nas sociedades ocidentais contemporâneas, desde que as religiões declinaram nesta função: Estado (central e os demais níveis de governo); os mercados (com suas diferentes facetas, envolvendo desde os mercados altamente concentrados e internacionalizados como o mercado audiovisual, mercados altamente impactados pelas tecnologias de informação, como os mercados de artes visuais e de música, até mercados populares desconcentrados e eminentemente locais/regionais, como em certos mercados de cerâmica, de teatro popular, de música, de festas comunitárias etc.).

Ao lado desses dois grandes “financiadores”, as famílias seguem desempenhando um forte papel: além do consumo doméstico, é muito comum que artistas sejam bancados por suas famílias por mais tempo que considerariam confortável ou desejável. Além desses, temos os esforços individuais e de organizações da sociedade civil para o provimento de atividades culturais. Nesta última categoria, há toda uma gama de mesclas e formatos, entre o público e o privado, muito características do setor cultural. Precisamos considerar ainda que não temos uma tradição de participação forte do setor financeiro, seja privado, seja público, no financiamento da cultura no Brasil, a não ser por meio da utilização dos mecanismos incentivados. E que a participação de organismos internacionais no campo cultural, apesar de importante, ainda não foi efetiva seja para alavancar recursos para o setor, seja para comprometer eficazmente os países para que aloquem recursos no campo cultural em níveis satisfatórios, embora começamos a observar movimentos importantes nesta direção recentemente.

Além disso, o financiamento do setor cultural tem que lidar com uma questão muito sensível, de fundo: a questão da autonomia e da liberdade estética, e os dilemas envolvidos na equação do “quem paga quer determinar o que se produz”. Não é preciso que me prolongue neste tema, bastante caro para os leitores do seu site, mas é claro que os riscos e casos de interferência existem, seja nas conduções dos mercados, de estados e seus governantes, famílias, bancos, financistas e organizações civis.

Portanto, ao reconhecermos estes aspectos, seria fundamental que a nova lei de financiamento da cultura buscasse consolidar um pacto político envolvendo todos estas categorias de “financiadores” para que se assegurassem as melhores condições de autonomia e liberdade criativa para artistas e os públicos. Do meu ponto de vista, este deveria ter sido o grande pacto político que esta nova legislação deveria produzir, especialmente entre Estado e Mercados, as duas principais macro instituições sociais envolvidas no financiamento das atividades culturais no mundo contemporâneo. Ou seja, construir uma lei que buscasse aumentar a responsabilidade pública desses atores para que financiem as atividades culturais visando preservar ao máximo a liberdade e a diversidade da produção e da fruição cultural. Este, em meu limitado entender, deveria ser o “território de convergência” a que uma lei pública de financiamento à cultura deveria se propor. Novamente, tenho dúvidas se isso foi alcançado, sequer que isso tenha sido almejado.

Aparentemente, e sempre posso estar enganado, tive a impressão que, na relação com as empresas, por exemplo, foram sendo realçados os comportamentos negativos no uso do mecanismo de incentivo fiscal por parte das agências de marketing das empresas e da apropriação indiscriminada dos benefícios por parte das grandes empresas por meio de suas fundações e institutos, sem se buscar estimular comportamentos que conduzissem empresas e suas instituições culturais a adotarem procedimentos que possibilitassem a ampliação da liberdade na produção e na fruição cultural e artística. É claro que há comportamentos predatórios, oportunistas e dirigistas no mundo das empresas privadas, assim como nas empresas públicas (e no Estado), mas não há só isso. Creio que na construção de uma legislação – sem desconsiderar esses comportamentos deletérios a serem coibidos – deveríamos estar mirando, enfatizando, buscando fortalecer sempre que possível os comportamentos responsáveis, inovadores, criativos, republicanos etc. dessas instituições.

Deste ponto de vista, me parece que o novo PL pode apresentar resultados contrários aos desejados porque pode induzir a uma radicalização do uso mercadológico do incentivo fiscal, ou seja: se o empresário não foi convidado a participar, se esta categoria foi caracterizada como oportunista, e se agora ele tem que colocar dinheiro próprio nos projetos, pode ser que esta figura seja muito mais seletiva, escolhendo exatamente aqueles projetos de maior retorno de marketing ou de seu interesse pessoal. Ou seja, muitos projetos e mesmo setores podem deixar de ser interessantes para a aplicação de recursos incentivados. Se esta hipótese for plausível, temo que setores menos atrativos do ponto de vista do marketing, como por exemplo, o setor de leitura e literatura e de cultura popular, poderão ser prejudicados.

Por outro lado, uma parte dos críticos do projeto de reforma tenderam a ressaltar o possível controle excessivo por parte do Estado, seu autoritarismo e etc., sem apontarem alternativas para a questão de fundo que é lidar com o processo decisório para a alocação de recursos públicos em regimes democráticos e de direito como o que estamos consolidando em nosso país. Corremos o risco de não compreender a importância do setor público no conjunto da obra.

Bem, voltando a sua questão, embora um balanço mais completo dos possíveis impactos ainda esteja longe de ser conhecido, pode-se inferir, pelo que está escrito no texto do PL, que começa a se delinear uma nova hierarquia na alocação e apropriação dos benefícios fiscais. No topo desta hierarquia, encontra-se ao que tudo indica, o setor audiovisual, que não apenas manteve intocados os incentivos fiscais estabelecidos na Lei do Audiovisual, que já eram maiores que os dos demais setores culturais, como ganhou um novo “fundo” na programação do FNC. Diante disso, é provável que ocorra uma fuga de proponentes culturais para a lei do audiovisual.

Numa faixa aparentemente intermediária, ficam os projetos com grande apelo comercial. Numa situação temerária, aqueles setores e projetos com baixa atratividade de marketing, havendo ainda uma sub-escala entre os que foram beneficiados por fundos/programações específicas (mesmo que sem garantia de recursos) e aqueles que ficaram sem-fundos específicos, ouvindo sereias.

Por outro lado, há um ganho considerável para o Sistema Nacional de Cultura, embora entenda que seja preciso ainda reflexão sobre alguns aspectos, em particular sobre como se darão as aplicações dos fundos setoriais nos Estados e municípios, as tais regras de regionalização. Lembro que esta medida não constava da minuta original e que foi preciso a firme mobilização do Fórum de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura para que esta medida estruturante fosse finalmente incorporada. A incorporação tardia do financiamento do SNC apenas no segundo documento talvez apresente indícios de tensões mais fundas: esta medida pode ter sido interpretada mais como “perda” de controle do poder central sobre recursos “liberados” para as pontas, do que como uma iniciativa, ainda que insuficiente, fundamental para consolidar o SNC e para o próprio fortalecimento do FNC. Lembro que uma ação mais decidida para fortalecer o Sistema Nacional de Cultura poderia ter sido compatível, por exemplo, com a aspiração de se elevar a participação de recursos provenientes dos Fundos de Desenvolvimento Regional para alimentar o FNC, estipulados no cap. 15, inciso VI do PL em apenas 1%. Não sei o quanto isso representa, e o tamanho dessa briga com os estados e municípios, mas esta alíquota mereceria ser bem maior.

No tocante ao patrocinador pessoa física, o PL apresenta um importante alento em seu art. 25, tornando possível ao cidadão que faça a doação a projeto cultural diretamente em sua Declaração de Ajuste Anual (portanto, no momento em que está fechando as contas com a Receita). Contudo, esta possibilidade está limitada a apenas 1% do imposto devido, e certamente poderia crescer até os 6%, que é o limite geral do benefício fiscal das PFs. Os dados disponíveis no site do MinC são contundentes quanto a este potencial, já que os indivíduos que aplicam recursos em projetos culturais tem sido sempre um número irrisório (menos de 0,1% dos potenciais doadores, indivíduos ou famílias que declaram IR no modelo completo e que tem imposto a pagar, algo em torno a 6,3 milhões de contribuintes, conforme dados da Receita). O artigo 25 é importantíssimo para lidar com esta disfunção, mas pode certamente ser melhorado no Congresso com a ampliação do limite de 1 para os 6%. Esta medida daria um grande impulso ao patrocinador individual, também se viesse combinada com medidas de outra natureza, como a (re) ativação de canais de informação entre o cidadão-contribuinte e os projetos culturais aprovados, de modo que o cidadão tenha a informação e possa dar o destino de seu imposto diretamente aos projetos que queira apoiar.

Acredito também que um setor que sairá beneficiado serão os advogados especialistas em legislação cultural, pois temo que teremos um aumento dos embates jurídicos envolvendo especialmente a aplicação das alíquotas diferenciadas para os projetos. Diferentemente do modelo da Lei Roaunet, o Procultura apresenta um grau de discricionariedade que, embora relevante sob certos aspectos, pode ser constantemente questionado pelos produtores culturais e seus advogados. Houve melhora em relação à minuta inicial, mas ainda resta um largo espaço para a contestação jurídico-judicial das decisões da CNIC/MinC, algo que precisa ser devidamente considerado pelas partes envolvidas.

Bem, neste balanço sobre quem ganha e quem perde, faz-se necessário que se observe com maior atenção algumas “áreas cinzentas”, sobre as quais não se dispõe de informações suficientes. Menciono três delas. Na faixa dos projetos com viabilidade comercial, sempre defendi que estes projetos fossem analisados separadamente e conduzidos para financiamento por mecanismos de mercado, seja pelos FICARTs, seja o financiamento reembolsável pelo FNC, quando o Estado torna-se “associado” ao projeto. Do meu ponto de vista, esta última alternativa poderia ser até mais interessante do que a transferência para os FICARTs já que os recursos antecipados num projeto poderiam retornar, inclusive com algum rendimento, ao FNC e, deste modo, projetos de sucesso poderiam ajudar projetos não comerciais e o sistema se reforçaria como um todo. Pois bem, isso foi corretamente colocado pelo PL, e é uma das principais inovações em relação àquela minuta de PL submetida à consulta pública. Até aí tudo bem, sempre defendi este tipo de tratamento e acompanho o PL até este ponto.

Contudo, as coisas se complicam, e muito, com a possibilidade do benefício dos 100% de abatimento de incentivo fiscal para as aplicações nos FICARTs (até 2013, cfe. Art 48, inciso I), isto é, nos fundos financeiros de aplicação na bolsa de valores. Trata-se de um incentivo magistral à constituição dos FICARTs, e portanto, à financeirização da tomada de decisões sobre os projetos culturais, com incentivo fiscal de 100% dos valores aplicados. Ou seja, pela nova redação, não há mais o 100% de incentivo para se produzir um livro ou uma peça de teatro (salvo em circunstâncias específicas), mas há 100% de incentivo fiscal para quem aplicar em fundos na bolsa de valores, que, obviamente, irão mirar em projetos de alto retorno comercial (temporadas do Cirque du Soleil e shows da Madonna, por exemplo), sem precisarem retornar nada ao FNC e aos setores mais fragilizados. Mesmo um tanto distante, não fico tranqüilo com esta proposta, e gostaria de conhecer as justificativas para dar dinheiro para grandes empresas aplicarem em fundos na bolsa, estimulando um salto avançado rumo à financeirização do investimento em cultura. Do ponto de vista das grandes empresas, e dos bancos em particular, é provável que tenhamos um declínio das aplicações em seus institutos e fundações e o crescimento das aplicações nos FICARTs. Lembro ainda que os FICARTs podem escolher diretamente quem eles querem apoiar ou não (não há editais, nem comissões, nem eleições, sendo, portanto, factível que os projetos dos amigos sejam financiados sem o menor constrangimento). Mais ainda, pelo que entendi, tudo isso aparentemente sem controle, já que um projeto com viabilidade comercial pode receber apoio reembolsável do FNC e também pode receber aportes dos FICARTs, sem precisar prestar contas disso. Gostaria de ser esclarecido sobre isso pois o texto do PL não é claro sobre o tema (menciona o papel da Comissão de Valores Mobiliários, mas tenho dúvidas se isso é atribuição da CVM).

A segunda “área nebulosa” está relacionada às possibilidades do 100% de incentivo fiscal, negado a priori para uma série de atividades, mas autorizadas, se não me engano, para duas outras modalidades de projetos, além das aplicações nos FICARTs: (a) aplicação em projetos de restauro de bens do patrimônio histórico tombados, que podem ser efetuados pelo próprio proprietário do imóvel (se entendi bem); (b) e para a aplicação em projetos culturais executados em regiões com baixa presença de equipamentos e serviços culturais e baixa captação. Esta última modalidade me parece uma das melhores proposições do PL, e é algo louvável e que sempre defendi, já que representa a essência do incentivo fiscal com efeitos corretivos sobre distorções locais e regionais. Embora haja sempre dificuldades com os indicadores a serem utilizados, creio que com bom senso esta pode ser uma medida das mais estimulantes. Então, me parece que esses projetos culturais e territórios podem se beneficiar, o que é algo extremamente positivo.

Já a possibilidade do auto-benefício no caso dos imóveis tombados (abatimento fiscal em imóvel próprio + valorização comercial do imóvel) traz, obviamente, como beneficiários os grandes proprietários (PJ e PF) de imóveis tombados, já que dificilmente um trabalhador proprietário de imóvel, digamos no Pelourinho ou em São Luiz, fará declaração de IR na modalidade completa, e mais improvável ainda, seus 6% de imposto a pagar representem um valor significativo para reformar o imóvel. É uma distorção que se mantém, já que isto estava previsto na Lei Rouanet, em seu artigo 24, inciso II. Há alguns problemas com esta manutenção: beneficia os grandes proprietários de imóveis tombados e é frontalmente contrário à lógica da vedação estabelecida no art. 3º do Parágrafo 3º do PL, que corretamente veda “a concessão de incentivo a obras, produtos, eventos ou outros decorrentes, destinados ou circunscritos a coleções particulares ou circuitos privados que estabeleçam limitações de acesso.” Abre, pois, o precedente para que sejam retiradas as vedações de patrocínio a eventos e à coleções privadas e outras similares. O problema da responsabilidade e da participação dos proprietários privados na manutenção dos imóveis tombados é sério, mas não me parece que esta proposta enfrenta adequadamente esta complexa questão.

A terceira “área cinzenta” está relacionada à ausência dos estudos sobre o impacto fiscal, e particularmente, sobre os impactos nos setores culturais das medidas propostas. Na medida em que a proposição de legislações que versem ou apresentem impacto fiscal devem ser acompanhadas de estudos de impacto fiscal (é isso o que determinam a LRF e a LDO, legislações em vigor), seria oportuno se ter acesso a estes estudos. Mesmo que haja controvérsia sobre a aplicação ou não do artigo 14 da LRF a um projeto como este (para mim, a aplicação é clara), ficaria muito mais tranqüilo ao saber quais os possíveis impactos fiscais, e mais importante ainda, nos setores e atividades culturais das medidas propostas. Por exemplo, se os FICARTs com 100% de incentivo fiscal irão canibalizar as demais modalidades de projetos (convertendo-se no novo artigo 18), e como ficarão os setores não comerciais dentro do mecanismo fiscal (questão que é algo bastante diferente de dizer que serão beneficiados pelas modalidades de fundos setoriais do FNC).

Sem estes estudos fica muito difícil arriscar um balanço conclusivo, mas os indícios, em meu entender, não são os melhores. Ainda mais porque o FNC, do jeito que foi proposto, não apresenta as plenas salvaguardas institucionais para o acesso aos recursos para o setor cultural.

LBO governo está certo em querer equilibrar o investimento direto com o mecenato, mas ao meu ver está equivocado em buscar reduzir o mecenato para buscar a equiparação. A busca deveria ser por aumento do Fundo. Você concorda com essa afirmativa? O projeto garante mais verbas para o Fundo?

MA – Esta perspectiva geral de buscar um maior equilíbrio é muito correta. Contudo, em meu entender, deveria ser precedida da busca da consolidação institucional do FNC e do orçamento finalístico do Ministério da Cultura. Ao não proporcionar isso, parece o caso de alguém que está vendo que a sua construção possui rachaduras, lajes, andaimes e apoios que não são satisfatórios, mas que se arrisca em retirá-los antes de firmar as bases da nova construção. Veja, não é porque, como me disse um amigo, se fraciona o pa-ra-le-le-pí-pe-do em diversas partes “setoriais” que o paralelepípedo aumenta automaticamente de tamanho, nem que este tamanho ampliado esteja consolidado, nem que cada uma das partes será mais consistente ou que terá mais recursos do que já dispunha.

Veja, a PEC 150 está no Congresso há anos e é uma fortíssima unanimidade em todo o campo cultural, e pela ordem da construção institucional, deveria vir antes, ou, pelo menos, que a tramitação da mudança da Lei Rouanet fosse vinculada à tramitação de medidas que garantissem constitucionalmente, ou em lei, mais recursos para o FNC. O mesmo se pode dizer do Plano Nacional de Cultura, juntamente com o Sistema Nacional de Cultura, dão substância e meios de execução para a PEC 150.

De um ponto de vista mais específico, embora eu não concorde com a base “fiscal” do Fundo das Artes Cênicas, da Música, e das Artes Visuais [com o tamanho do orçamento fiscal brasileiro não concordo que tenhamos que apelar para mais uma loteria para financiar a cultura], certamente a proposição desses fundos setoriais deveria ter sido acompanhada das medidas compatíveis para se criar a única fonte nova de recursos indicada para os mencionados fundos (no caso, a Loteria da Cultura).

Na mesma direção, o Fundo Setorial do Livro e da Leitura certamente deveria ter sido acompanhado do PL de sua criação (e não da mera “programação orçamentária específica”). Lembro que a criação desse fundo composto por contribuição – compulsória e não voluntária – de 1% das receitas do setor editorial foi pactuada com o setor há anos, desde a desoneração da cadeia do livro. Há reiterados documentos das organizações de classe do setor editorial pedindo o Fundo, pedindo para contribuírem com as iniciativas comuns do setor, numa espécie de fundo condominial. Hoje já há o amadurecimento que as doações voluntárias não funcionam, já que alguns doam e outros não. E este acordo e este fundo é corretamente cobrado pelo Presidente Lula, e não foi adiante por temores da área econômica do governo e pressões de parte da imprensa, que fica na cantinela neoliberal de mais um “imposto” que será repassado para os preços… Ora, o Brasil precisa se mobilizar para a leitura e esta contribuição do setor editorial seria extremamente importante para a população e retornaria para o próprio setor. Falamos de uma contabilidade muito mais sofisticada! Nestes termos, o envio do PL criando a contribuição e o Fundo do Livro e Leitura seria altamente bem vindo.

Enfim, para mim é claro que o mais racional seria garantir primeiro a ampliação dos recursos do FNC e do Orçamento direto do MinC e, substantivamente, consolidar esta ampliação em termos legais e institucionais, simplesmente para que o setor não tenha que depender anualmente dos humores e inclinações dos Presidentes, da “sensibilidade” de ministros do Planejamento e da Fazenda, de relatores do orçamento no Congresso e de emendas parlamentares de difícil e complicada negociação e liberação, ou da simpatia do ministro de plantão. E, concomitantemente, que se conduzisse aberta e serenamente as mudanças nas distorções que existem nos demais mecanismos, em particular no de incentivo fiscal.

Sobre "Leonardo Brant " http://www.brant.com.br

Pesquisador de políticas culturais. Autor do livro "O Poder da Cultura" e diretor do webdocumentário Ctrl-V::VideoControl.

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