quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Sobre o mito da democracia racial

Recebi com entusiasmo, semana passada, dois exemplares da coleção “Consciência em Debate”, da editora Selo Negro, da Summus editorial: “Relações Raciais e Desigualdade no Brasil” e “Políticas Públicas e Ações Afirmativas”, cuja coordenação editorial ficou a cargo de Vera Lúcia Benedito. Ela esclarece conceitos, aponta o lugar da desigualdade na história e no presente e fala sobre a relação entre produção e diversidade.
Vera é mestre e doutora em Sociologia/Estudos Urbanos pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora e consultora da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo e nos concedeu a seguinte entrevista:
Leonardo Brant - Como o racismo se desenvolve e se manifesta no Brasil atualmente?

Vera Lúcia Benedito - Nas sociedades contemporâneas, o fenômeno racismo assume diferentes contornos dependendo do contexto, da formação histórica, socioeconômica, cultural e política de cada nação. Não há uma forma específica de definir o racismo, mas a combinação das variáveis citadas ajuda na produção deste fenômeno social. Em termos gerais – e aqui empresto uma definição utilizada há muito tempo pelo famoso sociólogo norte-americano William Julius Wilson, ainda válida nos dias de hoje –, o racismo pode ser definido: “como uma ideologia racial de dominação e exploração que (1) incorpora crenças específicas em relação à inferioridade biológica e cultural de uma “raça”, e (2) o uso de tais crenças para justificar e prescrever tratamento desigual ou inferior a um grupo assim caracterizado” (William Julius Wilson. Power, Racism and Privilege).

Seria mais correto falar em racismos, uma vez que podemos distinguir o racismo explícito, baseado em normas legais, as quais justificam a segregação espacial, social, política e cultural de um determinado grupo social. E há o racismo implícito, que apesar da ausência do suporte legal, permeia as relações sociais de forma sutil e nem sempre tão sutil, relegando um ou vários grupos sociais a lugares socialmente demarcados pela indiferença, tratamento desigual, práticas discriminatórias, ausência de reconhecimento de atributos positivos. Embutida nessas duas formas de racismo está a convicção de que o (s) grupo(s) assim caracterizados são “os outros”, um eufemismo para designar subcidadania. O resultado prático dessas convicções resulta na ausência do papel do Estado no provimento de equipamentos sociais de qualidade, como escola, saúde, moradia, saneamento básico, transporte coletivo, etc. Nesse contexto de pensamento social, há aqueles que merecem naturalmente o lugar de cidadãos e os que não são merecedores da mesma distinção e respeito.

Por mais de quatrocentos anos, no Brasil, durante o período colonial, e após 1822, enquanto nação independente, as relações, políticas, econômicas e culturais foram sedimentadas por um regime racista de dominação baseado na escravização de seres humanos – tanto os habitantes originais da terra como os africanos transplantados de um continente para outro. Como bem diz o escritor Alberto da Costa e Silva, “todo regime baseado na escravidão é violento”. E a violência foi a política social mais difundida na formação da sociedade brasileira.

Após a abolição da Escravatura, em 1888, e com o advento da República, em 1889, entramos numa nova fase da modernidade, sem que os antigos trabalhadores da velha modernidade no novo mundo usufruíssem dos benefícios dos novos tempos. Assim como no antigo regime, na era republicana a maioria de africanos e seus descendentes no Brasil continuou a ocupar no imaginário social e nas práticas interpessoais o lugar do “outro”, do subcidadão como grupo social. As vozes daqueles negros e negras brasileiros que conseguiram, enquanto indivíduos, sair da condição de subcidadania, tornaram-se inaudíveis na memória da nossa nação. Figuras como André Rebouças, Luiz Gama, Manuel Querino e Antonieta de Barros (a primeira deputada estadual negra pelo estado de Santa Catarina) ainda são desconhecidas para a população brasileira, em geral, e para a população estudantil, em particular. Dificilmente aprendemos na escola que o primeiro grande editor brasileiro foi Paula Brito, um mestiço de negra e branco que iniciou Machado de Assis nos círculos literários.

O curioso de rememorar esses dados para falarmos sobre racismo, como fenômeno histórico, é que muitos brasileiros proclamam em alto e bom som para o mundo todo que vivemos numa democracia racial. É bem verdade que essa ideologia está desgastada em vista das mazelas cotidianas. Ainda não conseguimos dar o salto qualitativo para de fato transformarmos a sociedade brasileira em uma democracia racial substantiva. Dezenas de pesquisas e estudos contemporâneos continuam a apontar de que maneira “a indiferença como racismo” continua a vitimar e condenar milhões de brasileiros e brasileiras, sobretudo negros e negras, a viverem como “outros”, como corpos descartáveis pertencentes ao não lugar. Infelizmente, neste final de primeira década do século XXI, o estigma associado à cor da pele determina em nosso país quem vive e quem morre, em geral prematuramente.

Os meios de comunicação, a mídia em geral, os espaços de entretenimento, os canais formadores de opinião pública, a escola, as empresas, continuam a tratar o cidadão negro brasileiro como ser invisível, alijado de avanços e conquistas sociais positivas, a não ser é claro, como canta Ivo Meirelles, quando aparece no Jornal Nacional retratados como foras-da-lei.

Hoje, dentre as diversas formas como o racismo se manifesta, podemos dar dois exemplos: primeiro, na valorização negativa contínua do negro na sociedade brasileira, o que tem contribuído para a sua invisibilidade em todos os lugares socialmente relevantes. Este fator impacta negativamente a autoestima de crianças, jovens e adultos, que não vêem a sua humanidade resgatada enquanto pessoas, enquanto indivíduos. Segundo: a indiferença coletiva que naturaliza lugares e papéis sociais predeterminados produz políticas sociais de igual teor, seja na educação de baixa qualidade, na falta de investimento na formação de professores, na ausência de investimentos em saneamento básico e moradia digna, o que acaba produzindo o racismo ambiental; como também na falta de investimentos na área da saúde, no tratamento do idoso.

Acredito que precisamos ter um contrato com o futuro deste país pela via permanente da educação. Precisamos nutrir a autoestima e os talentos positivos de nossas crianças. Precisamos cada vez mais lutar por uma educação antirracista, contra todas as formas de discriminação: de cor e etnia, de gênero, religiosa, opção sexual etc. Quando prestarmos mais atenção à amplitude devastadora do racismo como indiferença ou estranhamento em relação a um ou mais grupos sociais, talvez possamos agir mais concretamente para reforçar ferramentas sociais de combate às desigualdades.

LB - Que balanço você faz das políticas afirmativas dos últimos anos?

VLB - É preciso definir o que são “políticas afirmativas” já que há muitas variações conceituais sobre esse termo. Antes de mais nada, é preciso levar em conta que o conceito engloba, simultaneamente, aspectos redistributivos e de reconhecimento de pertença racial ou identitária na distribuição de bens materiais ou simbólicos por parte do Estado ou grupos privados a segmentos historicamente discriminados. Isso quer dizer que as políticas ou ações afirmativas referem-se a um conceito guarda-chuva que abriga uma variedade de ações visando desde o acesso de estudantes negros e indígenas à universidade como aos diversos programas de permanência que impulsionam a trajetória acadêmica desses estudantes e a conclusão bem-sucedida de seus cursos de graduação. No Brasil, a modalidade de reserva de vagas, popularmente conhecida como “cotas”, é um dos mecanismos adotados para impulsionar acesso de estudantes negros e indígenas ao ensino superior. Em termos gerais, as ações afirmativas objetivam a retenção de talentos nos bancos universitários, os quais num futuro próximo poderão contribuir para o desenvolvimento social, político e econômico do país. Sem essas políticas, boa parte de estudantes oriundos de segmentos sociorraciais historicamente discriminados e de baixa renda não teriam condições de frequentar um curso superior. Em termos específicos, com a inclusão das políticas afirmativas, estudantes negros e indígenas tendem a refletir no espaço acadêmico a diversidade étnico-cultural da sociedade enquanto exercício efetivo da igualdade de oportunidades e representação simbólica e substantiva.

Fala-se muito de políticas afirmativas no setor educacional, mas essas políticas englobam também o mercado de trabalho. Nessa área da vida econômica, as políticas afirmativas inserem-se nos programas de treinamento de recursos humanos das empresas, públicas ou privadas, e objetivam estabelecer um plano comum de ações que impulsionem a mobilidade ocupacional de empregados tendo por princípio a igualdade de oportunidades. No mercado de trabalho, a ausência da presença negro-indígena no setor financeiro e empresarial é notória.

Temos apenas 8 anos de adoção de políticas afirmativas voltadas para os segmentos negros e indígenas mais empobrecidos da sociedade. Nas universidades, os alunos que entraram sob o regime de reservas de vagas estão indo muito bem, o que prova que bons incentivos financeiros que garantam a permanência de estudantes nas universidades públicas e privadas dão resultado. Todavia, há uma quantidade enorme de estudantes, tanto do ensino público como privado, que por falta de recursos estão abandonando as universidades em números assustadores. Não há recursos suficientes para todos. Para piorar o nosso entendimento sobre essa questão, ainda não temos uma cultura de avaliação de políticas públicas para aferirmos essas grandes ausências nos setores educacionais e mercado de trabalho. Em relação a este último setor, apesar da falta sistemática de dados, o Instituto Ethos vem apontando a falta de mobilidade ocupacional de negros e negras em empresas de médio e grande porte. Para resumir essa análise, podemos dizer com segurança que estamos apenas engatinhando na implementação de políticas afirmativas na promoção de talentos em nossa sociedade. É importante ressaltar que políticas afirmativas vão além de abrir espaços representativos para grupos historicamente discriminados. Essas políticas se relacionam com a vantagem comparativa entre as nações, ou seja, talentos produzem riquezas. Precisamos estar mais atentos quanto a isso.

LB - Como o setor cultural e o financiamento à cultura podem contribuir para diminuir o racismo no Brasil?

VLB - De maneira substantiva, quanto mais incentivos e financiamentos à cultura a sociedade brasileira tiver para educar a população para uma cultura da igualdade a, todos nós nos beneficiaremos. Acredito que a publicação de livros didáticos e paradidáticos que dêem conta de representar com dignidade e igualdade todos os grupos sociais ajudará de maneira exemplar na diminuição do racismo. É preciso conhecer a nossa história para entendermos o presente e desenharmos o futuro.

Nesse sentido, o governo federal, estadual e municipal poderia apoiar financeiramente a publicação de livros sérios a respeito das questões etnorraciais. Além do apoio, a distribuição gratuita dessas obras a estudantes de todos os níveis – bem como a todas as bibliotecas do Brasil – seria mais uma boa iniciativa.

LB - Quais iniciativas culturais você destacaria como exemplos a serem seguidos?

VLB - Olha, acredito na publicação contínua de livros que resgatem a contribuição positiva do negro na nossa sociedade. A Selo Negro tem sido pioneira nesse sentido e tem atuado nessa direção bem antes da lei 10.639/03. Isto é fazer história, é certo que com olho no mercado, mas acima de tudo só o fato de haver esse reconhecimento é um avanço considerável para a diminuição das desigualdades e do papel do racismo em no Brasil. Se tomarmos como exemplo a Coleção Retratos do Brasil Negro, veremos o resgate da vida e da obra de figuras importantíssimas para a afirmação do negro brasileiro. Se pegarmos a Coleção Consciência em Debate, veremos a iniciativa de discutir temas ligados à temática etnorracial por vezes espinhosos que afetam a vida de todos os brasileiros. Além de livros, menciono também a necessidade de chamar a atenção para efervescência teatral que está sendo produzida por dezenas e dezenas de jovens negros e afrodescendentes em todo o Brasil. Estão produzindo textos de muito boa qualidade. Igualmente, contamos com quase uma dúzia de cineastas negros e negras que estão retratando a experiência negra em toda a sua humanidade. Há de se prestar atenção na produção literária de boa qualidade que está sendo produzida nos bairros mais distantes dos centros urbanos de todas as cidades brasileiras. Esse pessoal que está produzindo cultura de baixo para cima, está contribuindo para a emergência de uma nova consciência. Portanto, precisamos multiplicar esses bons exemplos, com mais investimentos públicos. Afinal, um país de quase 200 milhoes de pessoas precisa ser cada vez mais retratado em todas as suas cores, nuanças, talentos e humanidades. Esses produtores culturais compreendem exatamente tudo que eu acabei de dizer, e por isso mesmo não choram as mazelas do passado e do presente, mas utilizam o conhecimento sobre o passado para protagonizar o presente e um novo futuro. E isso é bom.

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