por: Ronaldo Jacobina
Foi durante a residência médica em cardiologia que Marcelo Veras, 47, decidiu fazer psiquiatria. O residente auxiliava uma cirurgia de coração e, enquanto obedecia às ordens do cirurgião-chefe, de apertar e soltar a veia aorta do paciente, mirava o teto do centro cirúrgico e se perguntava o que estava fazendo ali. Teve um insight. Trocou a bomba que faz a máquina humana pulsar pela que norteia a vida. Fez mestrado em Paris, doutorado no Rio de Janeiro e comandou o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, na Bahia. Daí para a psicanálise, foi um caminho natural.
Atualmente, divide seu tempo entre o consultório no 20º andar de um prédio na Avenida Tancredo Neves e a sede da Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão (Fapex), na Federação, entidade que passou a comandar há cerca de dois meses. Casado com a cientista da Fiocruz Patrícia Veras e pai de três filhas, ainda encontra tempo para dar aulas de psicanálise em instituições públicas e privadas e para tocar o projeto social Criamundo, que trabalha com a inserção de pacientes psiquiátricos no mercado de trabalho. Estudioso e contemplador da alma humana, administra com tranquilidade suas muitas ocupações. Nesta entrevista, Veras fala sobre as relações humanas da contemporaneidade e decreta que o amor cortês acabou. Sem fazer juízo de valor, em momento algum, alerta para o fato de que estamos caminhando para a solidão.
O que mudou nas relações entre as pessoas?
As relações hoje são mais rápidas e, forçosamente, mais efêmeras. A construção de uma relação requer um certo tempo, e o que vemos hoje são pessoas que não toleram a frustração do tempo longo, aquilo que a gente costuma chamar de fobia do tempo lento. Uma prova disso é que quando a internet começou a povoar a nossa vida, demorava um século para baixar uma página, hoje o mínimo que o computador demore para responder já angustia a pessoa, a gente já quer aumentar a capacidade do equipamento, já quer comprar um computador mais veloz, a gente não suporta mais esperar.
A internet tornou as relações entre as pessoas mais difíceis?
Isso pode tornar as relações mais difíceis. É claro que tem sempre quem diga que é facilitador, então não emito nenhum discurso de cunho moralizante, mas é difícil as pessoas se encontrarem hoje. As cidades tomaram uma dimensão tão gigante que é claro que os nossos filhos precisam recorrer aos chats para se encontrar. As grandes cidades perderam a escala humana. Antes você andava nas ruas e enxergava a vizinha do segundo andar, hoje as proporções são muito altas e não se sabe o que se passa nesses prédios.
Isso aumenta a ansiedade?
Seguramente. As pessoas foram capturadas pela ideia da satisfação imediata. E essa felicidade é impossível e faz com que o sujeito não saiba mais lidar com o tempo. De um certo modo, a angústia e o pânico são situações em que o sujeito é capturado por uma urgência atemporal em que parece que ele não tem mais a dimensão do tempo, não tem mais a percepção do corpo.
Síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivo (TOC), anorexia… estas são doenças da contemporaneidade?
Certamente. Primeiro, são diagnósticos muito atuais, mas, no fundo, trazem sintomas que aconteciam sempre, mas que certamente são mais valorizadas por determinados remanejamentos da cultura contemporânea que fazem com que aconteça muito mais. E têm crescido na atualidade. O que existe hoje é uma paixão pela nomeação dos sintomas. O ser humano está desbussolado, ele não sabe mais quem ele é. As pessoas sentem a necessidade de se enquadrarem em alguma coisa. Na verdade, o que essas pessoas não têm é foco. Exige-se cada vez mais um ideal e, quando não se atinge, sofre-se porque será rotulado. Antigamente, as pessoas tinham cinco, seis irmãos. Hoje, os casais têm um único filho, e esse é o “projeto filho”. Ele foi concebido artificialmente, tem de passar nos melhores concursos, tem de saber inglês, enfim, tem responsabilidades para não frustrar o projeto dos pais.
Se não consegue, a criança se frustra, fica angustiada.
Exato. Existe o projeto família, e ele não pode ser frustrado. Existem casais que não conseguem ter filhos e fazem os mais diversos tratamentos e, quando conseguem, optam pela cesariana. Inverteram-se as coisas. Agora a dor é fazer o filho, e o parto é o prazer. Antes era o contrário.
São estes projetos de família que tornam as relações tão efêmeras hoje?
É claro. As relações hoje são líquidas, tudo se tornou muito rápido, muito fluido. O tempo é muito rápido. Estamos numa hipermodernidade que nos cobra rapidez, eficiência, velocidade e se suporta muito pouco a frustração de um parceiro. Existe a ideia de que uma coisa pode, rapidamente, ser trocada por outra. Vivemos numa liberação sexual na qual tudo é permitido. Tenho casos no meu consultório de homens que conseguem ter todas as mulheres que desejam, mas não conseguem ficar com nenhuma. O grande sofrimento deles é não se fixar em uma mulher só.
E não conseguem por quê?
Porque só conseguem amar, só conseguem gozar e ter aquela mulher como um objeto de gozo imediato.
Então o amor acabou?
Sim, de certa forma sim. O amor cortês, aquele em que o sujeito movia o mundo para conseguir o olhar da amada, mas não alcança, acabou.
Esse amor não realizado pode gerar uma grande frustração?
Sim, só que as pessoas chamam isso de depressão. Ninguém tem mais frustração, todos são perfeitos, o que as pessoas têm agora é depressão. Depressão é o nome da frustração na contemporaneidade. Existe uma paixão contemporânea por tudo que tem a ver com o corpo. O que a gente percebe é que o que o homem tem de mais intrinsecamente humano, que são seus erros, suas falhas, suas hesitações, tudo isso hoje está sendo transformado em erro cognitivo. Hoje ninguém pode dar mais mancada, a pessoa pegou o erro de um pensamento-padrão. É preciso acabar com a ideia de que o primado da cognição, da mente, vai transformar um homem num outro, que vai conseguir eliminar os erros que ele tenha na vida.
Mas somos nós que fazemos as nossas escolhas?
Sim, mas o sujeito bem informado não vai escolher exatamente o melhor. Não adianta chegar para ele, informá-lo e dizer: olhe, escolha isso, escolha aquilo, olhe a má escolha! Se você fizer isso assim ou aquilo lá… Muitas vezes, escolhemos o pior, isso não é um erro de cognição, é da natureza humana mesmo, de que nosso modo de gozar, de desejar, nunca é exatamente aquilo que a gente queria. Nunca estaremos plenamente satisfeitos porque seremos sempre metades incompletas. O que acabou também, e nesse ponto a psicanálise é até muito próxima do mundo contemporâneo, foi aquele mito de que dois fazem um. Tem uma música da Fátima Guedes que diz “quando dormimos juntos, sonhos separados, que nós não vamos confessar de modo algum”. Sempre que estamos com o outro, há uma franja de traição. Muitas vezes, o homem fica preocupado que a mulher o esteja traindo com outros homens, e a gente vê na psicanálise que, às vezes, as mulheres os traem consigo mesmas. Elas têm algo da feminilidade que nunca vão conseguir comunicar. É um mundo feminino que não se comunica nunca com o mundo masculino. Então, onde esta análise faz um certo diferencial, na questão sexual, por exemplo (Lacan, quando disse isso, foi um escândalo), a relação sexual não existe. O que ele quis dizer é que sempre a relação sexual é incompleta, sempre deixa algo a desejar.
Então a sexualidade ainda move tudo?
Sim, a sexualidade ainda move o mundo porque o ser humano é sexual. Mas a questão não está só nisso. Está no fato de que há um momento em que a sexualidade tem que abrir uma brecha para que eu realmente encontre o outro. A sexualidade tanto pode ser usada para que eu fique trancado no meu mundo narcísico, pode ser algo que me tire um pouco do mundo, como pode ser algo que me faça me comunicar com o mundo. Existe um componente da sexualidade que chamamos de narcísico ou autoerótico de que dois nunca fazem um. Sempre serão dois, na cama, por exemplo. Esses dois nunca formam um perfeitamente. Cada um com sua fantasia, com seu modo de extrair gozo com o outro, dentro da fantasia. Ora, mas há um modo de viver essa sexualidade em que esse outro é um outro que fala, que existe como pessoa – e aí estamos diante de uma cortina que podemos chamar de amor –, e há um outro que é um mero instrumento para o meu gozo autoerótico. E aí esse outro vai ter a função, em alguns casos – isso são palavras de um paciente meu –, tão semelhante a uma boneca inflável, apenas não é inflável, mas ele mesmo tem essa impressão de que está se relacionando com uma boneca inflável. Porque aquela parceira que está ali vale tão pouco pelo que é e tão mais pela vontade dele de se autossatisfazer sexualmente.
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