Tambores do Brasil - Os Tigres da Abolição
Quando os primeiros tambores do Império Serrano soaram na Sapucaí, nesse domingo de carnaval em uma explosão de fascinante requinte humano capaz de produzir aquele manifesto tão vigoroso, tão intenso de alma, tão especialmente humano e, no dia seguinte, o “Tambor”, tema do Salgueiro, que levantou as arquibancadas do Brasil, mesmo antes de sua entrada na Sapucaí, pela força simbólica do enredo escolhido, lembrei-me das palavras de Mário de Andrade, de que a música é a ponte entre o homem e a magia, é a alquimia que nos entorpece, nos hipnotiza e nos redime. Quando vemos os maracatus pernambucanos, os blocos de afoxé da Bahia, os tambores dos blocos e das escolas de samba por todo o país, produzindo um magnetismo inexplicável, somos obrigados a buscar outro sentido para o carnaval no Brasil, o que foge da análise superficial de um gozo pequeno, proposto por um olhar menor. A história de luta vencida e cada vez mais certificada pelos tambores brasileiros, nos prova que há um caminho lúdico, carregado de uma intensa simbologia, dentro do nosso principal vetor, o tambor, que produz a magia da arte. Mais do que resistir, esse manifesto avança, como um tigre feroz, na defesa de almas, da liberdade contida em todos nós. Presos a algemaduras das mordaças das gargalheiras vira-mundo, dos instrumentos de suplício pertencentes ao comando que nos joga numa escravidão renitente.
Os tambores brasileiros são monumentos de sons erguidos, a arquitetura de almas expostas que nos devolve a esperança.
“Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse generoso, ninguém se cria malfadado por lhe minguarem de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não há surpresas que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho”. (Rui Barbosa).
Se o cativeiro, o açoitamento, o tronco ainda impõem-se em nossas doutrinas sob o julgo da tortura, a pena que assina a nossa liberdade não está decididamente nos palácios de ouro, está sim outro manifesto dentro desse caos de perdidos sentidos que nos é imposto cotidianamente, onde reside tão somente a incultura. Cá entre tantos de nós, os tambores soam como sinos a nos convocar para a cerimônia em povoamento pleno em todo o universo que compõe o sentido da arte. Este que está naturalmente conosco.
“Estilo não se cria, nasce. Nasce por exigência do meio. Ora, no meio incapaz dessa exigência, compete aos artistas provocá-la, criando o estado d’alma propício. E que artista é capaz disso? O anônimo, o artista legião – só ele. Basta para isso incitá-lo a independência, ensiná-lo a olhar em torno de si e tirar da natureza circunjancente os assuntos das composições, o motivo dos ornatos, a matéria-prima, enfim, da sua arte. Feita a semeadura, as mercês virão, com o tempo, fartas e consoladoras.” (Monteiro Lobato).
Esta orientação só nos é possível quando estamos no corajoso mergulho em nossas raízes, da guarda negra que nos dará sempre proteção do ambiente hostil e nos trará sempre as razões sentimentais do nosso sentido pleno, republicano de nos expressarmos e enxergarmos o resplendor do sol e alimentar a harmonia de nossas gargantas que nos jogarão num beijo as nuvens. A nossa inspiração se assemelha com o milagre. A eterna luz vem da nossa imorredoura cor de bronze, a mesma que guarda os tambores que estão dentro de todos nós brasileiros.
“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos”. (Darcy Ribeiro).
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