"Nascer artista é um privilégio e uma maldição. Privilégio porque quer dizer que você é um favorito, que o que você faz não é completamente seu crédito, nem se deve completamente a você, mas um favor que lhe foi concedido. É um privilégio fantástico ter acesso ao inconsciente. Eu tive de merecer esse privilégio e exercê-lo". Mais: "Faço escultura por necessidade, não por diversão. Não me divirto nem um pouco - na verdade, tudo o que faço é um campo de batalha, uma luta até o fim". Louise Bourgeois escreve confrontando-se permanentemente, sem véus, sem pudores. Dispõe de coragem de enxergar-se nua neste convencional baile a fantasia e ressurgir mais majestosa que uma coroada rainha.
O leitor, seduzido, rende-se ao clube exercitando imediatamente a senha do gozo proposto: "Eu sou o que faço", ela escreve. E vai adiante, obsessiva em enfrentar os fundos de seu mundo. "É uma compulsão e um imperativo moral pensar alto; se digo tudo sobre mim, tudo se resolve", diz ela.
Inicialmente fiquei impressionada com os escritos de Louise Bourgeois que trazem algumas de suas reflexões sobre arte, existência, vulnerabilidade, compromissos, entrega e processos. Comuniquei a ela que queria fazer um espetáculo com este texto, falando na primeira pessoa, e ainda pedia que a cenografia fosse dela. Foi uma entrada ousada, o que depois vim a descobrir ser bem de seu gosto. Soube que ela investigou com seu amigo brasileiro, por quem ela tinha adoração e que naquele momento era diretor do Departamento de Escultura do MoMA, Paulo Herkenhoff. Eu estava em Nova York como professora convidada na NYU. Os fatos convergiam. Paulo ajudou profundamente no encontro e na peça que conta com cenografia, assim como adereços, tudo em cena, dela, graças a ele na maior parte e ao assistente de Louise, Jerry Gorovoy, que, como diziam, "conhecia o tom em que Louise espirrou". Até mesmo os créditos e o título foram feitos em conjunto.
No processo de trabalho, chorei muito após a primeira visita a seu estúdio enorme, habitado por tantas peças portentosas, imensas, construídas logo por uma mulher tão pequenininha, que, quando sentada, flutuam, acima do chão, seus pés. Diante deles tive a grata oportunidade de, algumas vezes, me curvar, oferecendo-me para amarrar os cordões de seu par de tênis pretos. Aproveitei assim para ritualmente me inclinar perante seus 80 e tantos anos de rigor, contemplá-la de baixo para cima, onde ela está, junto aos gênios inspiradores, na minha opinião, reinando praticamente absoluta.
Me comovi por entender que, dali em diante, como numa revelação de texto de Borges, qualquer indivíduo anônimo andando pelas ruas, eu sabia agora, carregava no seu interior também tal imensidão expressiva.
Ela ficava muito contente quando sabia que o espetáculo estava em cartaz em algum lugar. Então, sempre que posso, o apresento. Ela sugeriu muito do que faço, uma vez que assistia aos ensaios (que eram na casa dela). Não adaptei nada de seus textos, são originais, apenas traduzi. Louise me emprestou duas toneladas de peças autênticas, sendo uma cela ou célula, uma escada feita especialmente para o espetáculo, um espelho de toucador mas em grande dimensão, moldes em gesso, estruturas de pano, até um lápis, um martelo, cadeira grande, cadeira pequena, luzes.
No fim do espetáculo, logo antes de acabar, eu ligava de um celular para a casa de Louise, botava o aparelho em viva-voz com um microfone e pedia que viesse ao telefone: contava-lhe que a apresentação estava terminando e que eu achava que o público gostaria de aplaudi-la. Perguntava-lhe se ela gostaria de ouvir, e ela dizia que sim. O público aplaudia, gritava o nome dela, e ela agradecia, agradecia. Nunca houve uma tarde em que eu não lhe tenha ligado perguntando se naquela noite ela gostaria que fizesse o telefonema e ela negasse. Ela queria sempre.
Aos domingos, Louise recebia em sua casa pessoas que queriam encontrar-se com ela. Mesmo durante os quatro meses em que ensaiava em sua sala, para ela, a peça, nunca captei o critério de seleção das pessoas admitidas ali. Mas vi interminavelmente Louise "esculpindo" as relações, como se já estivesse fazendo "instalações" ao vivo. De início ela já "destrói" o "pai" de cada um, aquele que nos garante algum equilíbrio. Estabelece um regimento centralizado no qual o convidado, sempre mais jovem, mais inexperiente, se vulnerabiliza. Ela, guerrilheira empossada - foi espontaneamente procurada pelo visitante, não foi? -, ataca sem dó: desmonta a pose do visitante, o escudo que ele sempre carrega para se apresentar. A mais idosa da sala, a mais vivida, a que foi procurada para um aprendizado, a mestra, não perde tempo e vai assumindo seu papel desafiador a fundo. Desmancha as impostações, cutuca o cerne. Ela diz: "A emoção é uma presença erótica, aquela sensação de tudo ou nada. Ou você resiste ou cede."
Obs: saiba mais e veja obras de Louise Bourgeois AQUI
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