terça-feira, 25 de maio de 2010

Heloisa Buarque de Hollanda – novas visões sobre periferia

por Luíza Costa / blog Acesso
Todos os dias, novos projetos culturais invadem as favelas do Rio de Janeiro. Idéias assistencialistas, de desenvolvimento da comunidade, diminuição do tráfico, ajuda à saúde, à educação e, claro, à cultura. Porém, são poucos os que olham para a realidade da favela e enxergam entre seus moradores artistas e, quiçá, intelectuais que necessitam de uma educação formal na área de cultura, já que experiência e sensibilidade sobram.

Foi debruçada sobre os estudos das periferias e trabalhando em projetos socioculturais que a lingüista e coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Heloisa Buarque de Hollanda, descobriu ainda mais sobre a cultura nas comunidades. Se pouco era feito, era porque menos ainda se conhecia, dentro do espaço acadêmico, sobre esses saberes da favela. A fim de promover a produção de conhecimento e criações artísticas em literatura, artes visuais, teatro, dança e música, Heloisa Buarque de Hollanda propôs a seus colegas da UFRJ a criação da Universidade das Quebradas, projeto que leva os moradores das periferias para dentro da universidade, por meio de um curso de extensão.

Em entrevista ao Acesso, Heloisa Buarque de Hollanda vai além da criação, desenvolvimento e expectativas sobre o projeto, e conta que, após quase meio século de vida acadêmica, tem compartilhado com os moradores das favelas um conhecimento que a muito não adquiria.

ACESSO – Como se deu esse salto de trabalhos acadêmicos na área de cultura desenvolvidos dentro da universidade pelo PACC para a criação de uma ação social?

Heloisa Buarque de Hollanda – Eu estava trabalhando há muito tempo com a periferia, desenvolvendo pesquisas, e percebia que a academia tinha completo desconhecimento do que era a favela, do que pensavam as pessoas que ali viviam. Mesmo eu, que frenquentava bastante esse ambiente, não conhecia muito, sabia que existiam intelectuais maravilhosos, mas não tinha conhecimento sobre o que eles pensavam. Foi então que propus uma troca de experiências, ao invés de continuarmos com os trabalhos já existentes.

ACESSO – E qual é o objetivo dessa troca?

H.B.H. – A principal ideia da Universidade das Quebradas é que haja uma troca de saberes e práticas de criação e produção de conhecimento entre membros da academia e dessa “elite”, possuidora de conhecimento informal, para que se articulem experiências culturais e intelectuais produzidas dentro e fora da academia.

ACESSO – O que há de especial nos artistas/ alunos da universidade? Como eles foram selecionados?

H.B.H. – São artistas com trabalhos consolidados em suas comunidades que apontam como revelações. Abrimos o processo de seleção e chamamos esses nomes expoentes dentro do universo das favelas. Dos convidados à seleção, tivemos 80 inscritos, que passaram por avaliação de portfolio e entrevista. No fim, foram selecionados 20. Apostamos em indivíduos que farão ou já fazem parte da história da arte no Brasil. Temos rappers, poetas, artistas plásticos, entre outros, que formam a massa crítica da periferia.

ACESSO – Após tantos anos lecionando, que diferenças são perceptíveis no processo de trabalho, em um projeto de inclusão sociocultural?

H.B.H. – A grande diferença de um trabalho como esse, quando realizado para um grupo da periferia ou de jovens de classe média, é que o segundo grupo vem com uma bagagem acadêmica diferente, já que o morador da periferia não teve a oportunidade de estudar formalmente aquele assunto antes. Muitos já tiveram contato com boa parte do conteúdo abordado em aula, porém não de forma organizada. Eles têm uma demanda de conhecimento reprimida e, consequentemente, uma busca muito mais entusiasmada. E é isso que faz dessa troca algo tão rico.

ACESSO – Seguindo essa ideia da troca de saberes, como são desenvolvidas as temáticas escolhidas, de modo a desenvolver um conteúdo intelectual formal sem perder a relação de intercâmbio de conhecimento?

H.B.H. – Começamos pela antiguidade, falando sobre a Ilíada e a Odisséia. Temos uma aula em que os professores se articulam mais para expor o tema e, na semana seguinte, promover o debate. Nesse fórum, ouvimos mais os alunos. E fiquei impressionada com o quanto eles têm a dizer. Quando falamos de mitologia e de cultura formal, eles associam à mitologia existente na favela. Todos têm uma familiaridade absurda com os assuntos abordados, mas vinda de universos simbólicos de suas próprias vidas.

ACESSO – Se a concepção da Universidade das Quebradas é dar acesso a um conhecimento formal a artistas de periferias e promover seu desenvolvimento, ao fim do curso, eles desenvolvem projetos de pesquisa?

H.B.H. – Sim. Todos os alunos deverão apresentar ao fim do curso um projeto de pesquisa. Isso é parte fundamental para que recebam seus certificados. A proposta é que nós, professores envolvidos com a Universidade das Quebradas, orientemos esses trabalhos. Agora, após algumas aulas, percebo que esse projeto será fundamental, pois, mais do que a necessidade de adquirir novos conhecimentos, eles necessitam de treinamento para articular seu conhecimento.

ACESSO – A partir dessa primeira experiência, já dá para traçar planos para a edição do próximo ano? Que novos projetos estão previstos para a Universidade das Quebradas?

H.B.H. – Tenho 74 anos e já criei muitos projetos ao longo de minha carreira. Hoje, não planejo nada a longo prazo. Crio projetos para serem concretizados em seis meses, um ano, e depois reformulo para ir em frente. Aprendi que não posso ter tantas expectativas; tudo acontece por tentativa e erro. As aulas acabaram de começar e eu estou apaixonada. É uma situação completamente nova para mim. E o mais encantador é que está funcionando. Estou entusiasmada com o processo, mas sem pretensões.

ACESSO – O trabalho com a periferia esteve presente em sua vida, desde a juventude, correto? Fazendo um comparativo, qual é a grande novidade da Universidade das Quebradas para você?

H.B.H. – Eu sou da geração de 1960. Sou da época em que se ia para as favelas para ensinar os moradores, sem qualquer preocupação com o que eles pensavam ou necessitavam. Sinto que eu mudei e essa relação também. A Universidade das Quebradas me fez ver que é essa nova relação a que eu quero. Achei um novo lugar para falar e aprender.

Luíza Costa / blog Acesso

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