A Lei Rouanet foi criada em tempos de Estado mínimo, pelas mãos de Fernando Collor. O mecanismo surgiu em substituição à Lei Sarney e veio acompanhado do maior desmanche institucional da história das políticas culturais brasileiras. A proposta de revogação da Lei enviada recentemente ao Congresso traz o gosto amargo de déjà vu.
Mecanismo complexo, de arquitetura simples e base conceitual sólida, a Lei Rouanet é dividida em três partes: o Mecenato, constituído de incentivo fiscal para doadores e patrocinadores; o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que abarca os investimentos diretos do Estado; e o FICART, um ativador de investimentos financeiros para indústria cultural nacional, com motivação de lucro.
Por falta de uma gestão competente ou de vontade política, dois desses mecanismos, o FNC e o FICART, nunca atuaram adequadamente, transformando o Mecenato no único instrumento válido de financiamento público à cultura. Trocando em miúdos, foi aberto um só guichê para atender as mais diferentes áreas da produção cultural, todos disputando o mesmo pedaço do bolo, criando assim distorções que há muito tempo tenta-se corrigir.
O governo FHC distribuiu aos empresários uma cartilha chamada “Cultura é um bom negócio”, apresentando as vantagens do investimento em cultura com o incentivo público. Além de ativar as relações com as comunidades, as ações culturais patrocinadas traziam consigo o enorme potencial comunicador. Nascia o marketing cultural, comemorado por muitos como o ovo de Colombo da comunicação empresarial.
Já em 2002 lutávamos todos por mudanças na Lei Rouanet. Com a eleição de Lula e a promessa de correção de abusos e desvios, exceções que mancharam a credibilidade de milhares de artistas e produtores, gerou-se uma percepção pública equivocada da Lei. Porém esse mecanismo tornou-se a salvação da cultura nacional em tempos difíceis e ajudou a fomentar inúmeros empreendedores culturais, desde projetos comunitários à indústria do entretenimento.
Lutávamos na época pela autonomia da CNIC, comissão formada por membros da sociedade, encarregada da análise dos projetos. Seu poder foi cerceado na época do ministro Francisco Weffort e sufocado ainda mais na atual gestão. Exigíamos transparência na aplicação do Fundo Nacional de Cultura, uma nuvem (cada vez mais) carregada de interesses político-ideológico-partidários. Buscávamos a justa aplicação do Ficart, para que o Cirque du Soleil não disputasse o mesmo mercado dos produtores pequenos e independentes, como fez na atual gestão.
Nos últimos 7 anos, observamos o mecanismo crescer e se consolidar, enquanto um discurso inovador a respeito da arte e da cultura se propagava pela presença carismática de Gilberto Gil, à frente do Ministério da Cultura (MinC) no primeiro mandato de Lula. Nesse período vivenciamos inúmeros debates públicos com o ex-ministro, em que a importância do aprimoramento da gestão da Lei Rouanet, tanto pública quanto privada, era ressaltada.
Infelizmente o discurso contagiante do Ministro Gil não reverberava em seu próprio gabinete. Sucessivas portarias e decretos dificultaram a vida dos pleiteantes ao benefício público, que deveria ser amplo e indiscriminado. Um processo que antes demorava de 45 a 60 dias para aprovação, passou a demorar de 180 a 360 dias. Os custos com advogados, ligações telefônicas e passagens para Brasília tornaram-se obrigatórios para quem quisesse aprovar um projeto. Os entraves burocráticos criados pelo MinC transformaram-se na maior causa da restrição de acesso aos pequenos e “fora-do-eixo”. Os números do próprio MinC comprovam, que sob a ação da atual gestão, houve aumento da concentração nas regiões mais ricas no atual governo.
Aos poucos os pequenos produtores desistiram do mecenato e passaram a engrossar o coro, forjado pelo próprio governo, com a tese de que o mecanismo é, por natureza, elitista e concentrador. Amparados por um assistencialismo moldado à cara do freguês e por uma campanha publicitária milionária (a maior da história), o novo ministro, Juca Ferreira, correu o Brasil com um diagnóstico falso sobre a exclusão cultural brasileira, atribuindo à Lei Rouanet a responsabilidade por todos os problemas centenários da nossa frágil política cultural, com ênfase justamente àquilo que não conseguiu resolver ou enfrentar.
Com um verniz de participação democrática, o MinC lançou uma consulta pública e diz ter recebido mais de 2 mil contribuições. Sem apresentar transparência ou qualquer critério de qualificação das propostas, vem a público com um dos maiores atentados contra a causa pública já vivenciados no campo da cultura, digna de tempos colloridos: o engodo chamado Procultura.
A sociedade quer mudança. Espera por isso há longos 7 anos de governo Lula, motivada por compromisso eleitoral de 2002. Mas o projeto apresentado é inaceitável. O Procultura decreta o fim da Lei Rouanet e de todos os benefícios e conquistas caros à produção cultural brasileira. Torna a renúncia fiscal, antes permanente, em temporária, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias e de Responsabilidade Fiscal.
Pela proposta, o Estado passaria a funcionar como co-patrocinador (sic), tomando decisões e definindo o perfil dos projetos a serem financiados. Uma atitude típica de regimes totalitários, que desejam impor sua visão de mundo aos demais, subtraindo do público e dos artistas a capacidade de expressão e escolha.
Além disso, diminui os benefícios de maneira abrupta e punitiva, justamente à classe de artistas e produtores mais necessitada, que não sobrevive sem o suporte de um sistema público de financiamento e amplia os benefícios para a parte lucrativa (FICART), criando uma disparidade enorme em relação aos outros mecanismos existentes no mercado, como a Lei de Incentivo ao Esporte e do Audiovisual, que continuam com os benefícios que o Procultura pretende cortar de maneira injustificada.
Marcado por forte presença estatal, o projeto exige contrapartidas dos patrocinadores, além daquelas que o próprio Estado é capaz de gerar, como, prestação de contas ao produtor cultural, divulgação de critérios e banca de seleção de projetos. O governo é o ente menos transparente no que tange a editais públicos.
Vale lembrar que em nenhum momento o MinC apresentou um estudo sequer, de avaliação da Lei Rouanet, evidenciando as supostas distorções, combatidas de maneira tão veemente. O que vimos foi um material publicitário com alto grau ideológico e com informações distorcidas. Não sabemos quais os interesses por trás da revogação do principal mecanismo de financiamento à cultura, mas é certo que a diversidade cultural, defendida de forma contundente pela propaganda oficial, será obviamente prejudicada com o fim do mecenato incentivado e a edição de um novo sistema altamente centralizador, anacrônico, burocratizante e estatizante, no pior sentido da palavra.
O PL é uma afronta à democracia, pois desinstitucionaliza e personaliza a gestão pública. A CNIC (comissão julgadora de projetos) por exemplo, passaria a atuar como uma rainha da Inglaterra. Cheia de pompa e circunstância, mas sem poder decisório, que caberia somente à pessoa do Ministro.
Nenhum dos itens questionados e exigidos pela sociedade são atendidos pelo projeto do governo. Ali não há um artigo sequer que garanta a distribuição correta e eficaz dos recursos públicos para as mãos de quem necessita.
Diante disso, não existe outra saída, senão enterrar o Procultura e fazer o que o MinC vem prometendo há 7 anos: uma reforma real da Lei Rouanet, baseada em estudos e pesquisas efetivas, que comprovem o impacto positivo das mudanças propostas.
* com Leonardo Brant.
** versão reduzida publicada sábado, dia 27 de março, na Folha de S.Paulo.
Sobre "Odilon Wagner " http://www.apti.org.br Ator e produtor de teatro, Odilon Wagner é presidente da Associação de Produtores Teatrais Independentes (APTI). |
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