Não à toa, no extenso núcleo de canções de “Zii e Zie” que compõe o novo show de Caetano (das treze faixas, só “Ingenuidade” e “Diferentemente” ficaram de fora), o clima é de desolação e perdição. Na bonita “Sem Cais”, segunda música do show, ele confessa estar com medo, e valoriza o desenho do palco entregando-se ao público de braços abertos, algo que repetirá em mais da metade da noite como um Cristo Redentor, como se estivesse dizendo “estou entregue, dado”, pedindo um carinho, preferindo-se ser levado a ficar sozinho e perdido.
O show é impecável no quesito instrumental. Ao eletrizar o samba com solos geniais, o trio formado pelo guitarrista Pedro Sá, pelo baterista Marcelo Callado e pelo baixista e tecladista Ricardo Dias Gomes aproxima Caetano Veloso de Romulo Fróes, outro compositor entregue a uma banda de acentuação roqueira, e o resultado só não é mais arrebatador, pois as letras de “Zii e Zie” não convidam a contemplação, muito menos impressionam – muitas até cansam. Caetano recheia os temas com alusões a sexo, sujeira, solidão, algo brutal que (quase) funciona em números como “Perdeu”, “A Cor Amarela” e “Falso Leblon”, e faz rir de bobagens como “Lobão Tem Razão”, “Tarado Ni Você” e da terrível interpretação em falsete de “Por Quem?”.
Desta forma, o show se divide categoricamente em dois: as canções (quase todas clássicas) pescadas do baú e que ganham nova roupagem com a bandaCê e as novas músicas que mostram um instrumental afiado, e letras nem tanto. Uma cordilheira separa “Maria Bethânia”, “Irene”, a sensacional versão de “Não identificado”, “Eu Sou Neguinha” e até mesmo a recente “Odeio” de coisas como “Lapa” e “Base de Guantánamo”. Caetano sobrevoa de asa delta (e leva o público consigo) sobre os dois lados deste repertório, e o público o aplaude timidamente (mais por obrigação que desejo).
Às vezes a noite fica confusa, como quando Caetano se veste de fina estampa e interpreta Gardel (”Volver”), ou recupera “Aquele Frevo Axé”, gravada por Gal Costa, o único momento banquinho e violão da noite. São pequenos flashs de pluralidade que ousam quebrar a frágil unidade do espetáculo, como se Caetano batesse no ombro do cara ao lado e dissesse: “Eu posso fazer isso também”. Ele sabe que pode fazer o que quiser, e só essa (pretensa) segurança permite avalizar que ele sabe que está perdido, e que o show “Zii e Zie” exterioriza exatamente isso.
Para o bis, o clássico de João Bosco e Aldir Blanc “Incompatibilidade de Gênios” retorna em roupagem quase rap, a parceria com Jorge Mautner “Manjar de Reis” sugere samba, “Três Travestis” (canção de 1977 que Caetano compôs para Ney Matogrosso gravar, mas que acabou registrada por Zezé Motta e foi recuperada pelo compositor após o escândalo envolvendo o jogador Ronaldo com travestis no Rio de Janeiro) coloca o bloco na avenida e, por fim, “Força Estranha”, com direito a saudação a Roberto Carlos, encanta.
Pode se dizer o que quiser de Caetano, menos que ele cochile sobre sua obra (em progresso). Apesar de frágil, o show “Zii e Zie” é um retrato nublado do momento atual do compositor, que permite a presença na platéia de jovens com camisetas do Sonic Youth e Queens of The Stone Age e serve como um disfarce para a solidão enquanto a próxima alegria não o abraça. Ele dá voz ao morto que vive dentro de si mesmo – e saúda Paulinho da Viola, Psirico e Fantasmão – permitindo que este tenha (ainda) um pouquinho da falsa alegria do carnaval e foca seu olhar no presente, no agora, no tempo que não pára, e que nunca envelhece. Melhor não pensar no futuro. Por enquanto.
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