sexta-feira, 10 de julho de 2009

Caetano Veloso

Zii e Zie ao vivo
Artigo escrito por Marcelo Costa
Assim que a cortina se levanta, e a bandaCê sai correndo a 100 por hora com “Cole na Corda”, de Psirico, que serve como introdução de “A Voz do Morto” (que ainda teria citações de “Tem Que Ser Viola” e “Kuduro”, de Fantasmão), a estética da nova fase musical de Caetano Veloso é escancarada. No fundo do palco, uma asa delta. Sobre ela, um telão. À frente, um trio instrumental afiado que apresenta pela primeira vez aos paulistanos o repertório de seu novo álbum, “Zii e Zie” (”Tios e Tias” em italiano), um disco de quase sambas tocados com pegada rock.
O rock que serviu como mantra para exorcizar um tempestuoso fim de relacionamento agora embala algo que Caetano define como transamba, em que (a dor d)o compositor deixa de ser o foco para transformar-se em observador do mundo. Um tio ou uma tia, como queiram, que olha os meninos de rua na Lapa, as meninas da ria em Lisboa, as garotas pretas de biquíni amarelo na areia do Leblon, a chuva num canto de praia no fim da manhã. Nada melhor que focar no externo quando o interno, o âmago, está completamente perdido..

Não à toa, no extenso núcleo de canções de “Zii e Zie” que compõe o novo show de Caetano (das treze faixas, só “Ingenuidade” e “Diferentemente” ficaram de fora), o clima é de desolação e perdição. Na bonita “Sem Cais”, segunda música do show, ele confessa estar com medo, e valoriza o desenho do palco entregando-se ao público de braços abertos, algo que repetirá em mais da metade da noite como um Cristo Redentor, como se estivesse dizendo “estou entregue, dado”, pedindo um carinho, preferindo-se ser levado a ficar sozinho e perdido.

O show é impecável no quesito instrumental. Ao eletrizar o samba com solos geniais, o trio formado pelo guitarrista Pedro Sá, pelo baterista Marcelo Callado e pelo baixista e tecladista Ricardo Dias Gomes aproxima Caetano Veloso de Romulo Fróes, outro compositor entregue a uma banda de acentuação roqueira, e o resultado só não é mais arrebatador, pois as letras de “Zii e Zie” não convidam a contemplação, muito menos impressionam – muitas até cansam. Caetano recheia os temas com alusões a sexo, sujeira, solidão, algo brutal que (quase) funciona em números como “Perdeu”, “A Cor Amarela” e “Falso Leblon”, e faz rir de bobagens como “Lobão Tem Razão”, “Tarado Ni Você” e da terrível interpretação em falsete de “Por Quem?”.

Desta forma, o show se divide categoricamente em dois: as canções (quase todas clássicas) pescadas do baú e que ganham nova roupagem com a bandaCê e as novas músicas que mostram um instrumental afiado, e letras nem tanto. Uma cordilheira separa “Maria Bethânia”, “Irene”, a sensacional versão de “Não identificado”, “Eu Sou Neguinha” e até mesmo a recente “Odeio” de coisas como “Lapa” e “Base de Guantánamo”. Caetano sobrevoa de asa delta (e leva o público consigo) sobre os dois lados deste repertório, e o público o aplaude timidamente (mais por obrigação que desejo).

Às vezes a noite fica confusa, como quando Caetano se veste de fina estampa e interpreta Gardel (”Volver”), ou recupera “Aquele Frevo Axé”, gravada por Gal Costa, o único momento banquinho e violão da noite. São pequenos flashs de pluralidade que ousam quebrar a frágil unidade do espetáculo, como se Caetano batesse no ombro do cara ao lado e dissesse: “Eu posso fazer isso também”. Ele sabe que pode fazer o que quiser, e só essa (pretensa) segurança permite avalizar que ele sabe que está perdido, e que o show “Zii e Zie” exterioriza exatamente isso.

Para o bis, o clássico de João Bosco e Aldir Blanc “Incompatibilidade de Gênios” retorna em roupagem quase rap, a parceria com Jorge Mautner “Manjar de Reis” sugere samba, “Três Travestis” (canção de 1977 que Caetano compôs para Ney Matogrosso gravar, mas que acabou registrada por Zezé Motta e foi recuperada pelo compositor após o escândalo envolvendo o jogador Ronaldo com travestis no Rio de Janeiro) coloca o bloco na avenida e, por fim, “Força Estranha”, com direito a saudação a Roberto Carlos, encanta.

Pode se dizer o que quiser de Caetano, menos que ele cochile sobre sua obra (em progresso). Apesar de frágil, o show “Zii e Zie” é um retrato nublado do momento atual do compositor, que permite a presença na platéia de jovens com camisetas do Sonic Youth e Queens of The Stone Age e serve como um disfarce para a solidão enquanto a próxima alegria não o abraça. Ele dá voz ao morto que vive dentro de si mesmo – e saúda Paulinho da Viola, Psirico e Fantasmão – permitindo que este tenha (ainda) um pouquinho da falsa alegria do carnaval e foca seu olhar no presente, no agora, no tempo que não pára, e que nunca envelhece. Melhor não pensar no futuro. Por enquanto.

FONTE: Obvious e Revista Speculum

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